31 anos do Massacre do Carandiru: Fechamento do Memorial é um marco de uma história de apagamentos
O Estado de São Paulo vem adotando há mais de trinta anos uma estratégia deliberada e proativa de apagamento do Massacre do Carandiru.
É simbólico que o Supremo Tribunal Federal tenha reconhecido, por unanimidade, a caracterização do “estado de coisas inconstitucional” das prisões brasileiras, justamente na primeira semana de outubro, quando se rememora o marco dos 31 anos do Massacre do Carandiru, ocorrido em 2 de outubro de 1992. Marco trágico da história do sistema penitenciário paulista e nacional, o massacre simboliza as violações massivas e persistentes de direitos fundamentais reconhecidas pelo tribunal. A compreensão das medidas estruturais que deverão ser implementadas deverá perpassar, necessariamente, pelo adequado resgate e reconstrução dos fatos e desdobramentos do massacre, ainda presentes na atuação das forças de segurança pública e no senso comum sobre encarceramento.
Como parte das iniciativas de preservação e resgate da memória do massacre, o encontro “Direito à memória e à verdade sobre o massacre na Casa de Detenção de São Paulo” estava agendado para o dia 05 de outubro no Plenário Tiradentes da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. O evento contava com o apoio de vereadores, deputados estaduais e da deputada federal Sâmia Bonfim, além de representantes de movimentos sociais pelo desencarceramento, mas foi cancelado diante da notícia do brutal assassinato de Diego Ralf Bomfim e de outras duas vítimas fatais em crime com características de execução, causando comoção nacional.
Na manhã seguinte, o Memorial Espaço Carandiru, único espaço dedicado à memória dos antigos moradores do antigo Complexo Penitenciário Flamínio Fávero, notadamente conhecido como Penitenciária “Carandiru”, comunicou em suas redes sociais a suspensão por tempo indeterminado de suas atividades.
O Espaço foi constituído no ano de 2007, sob administração do Centro Paula Souza e dentro da estrutura da Secretaria Estadual do Desenvolvimento, Ciência e Tecnologia. Após muita luta do movimento dos sobreviventes do Carandiru, no ano de 2022 - marco de 30 anos do massacre foi instalada uma placa em memória às 111 vítimas oficiais. Nela, se lê a frase: “para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça”.
No entanto, com o iminente encerramento do Curso técnico de museologia da ETEC Parque da Juventude do Centro Paula Souza, não há definições claras sobre o futuro do Espaço Memória Carandiru. Maurício Monteiro, sobrevivente do massacre e mediador do espaço comenta: “a nossa tristeza que todos sentimos é que após 31 anos é a memória está sendo apagada, está sendo morta”. “Assim como aquelas pessoas foram [mortas], mesmo a justiça entendendo que eles não são os algozes, e sim as vítimas de um Estado algoz”.
O Parque da Juventude, construído em 2003 sob as ruínas do complexo penitenciário, abriga o Espaço Memória Carandiru e também o Museu do Sistema Penitenciário Paulista. Em meio a gravuras de estudos lombrosianos, réplicas de facas e cordas feitas de lençol (as chamadas “terezas”) e de destilarias amadoras fabricadas por detentos para produção da conhecida “maria louca”, a única referência ao maior massacre do sistema penitenciário paulista registrada pelo Museu consiste em uma marcação da linha do tempo da história do Complexo do Carandiru II - na qual se lê a evasiva descrição no ano de 1992: “Motim no pavilhão 9, com intensa repercussão nacional e internacional”.
O Estado de São Paulo vem adotando há mais de trinta anos uma estratégia deliberada e proativa de apagamento do Massacre do Carandiru. Trata-se, talvez, de uma das ações de apagamento de memória mais longevas que se tem notícia, e que se inicia, propositadamente, no dia do próprio massacre.
O perito Osvaldo Negrini Neto, designado para averiguação do local dos fatos naquele 02 de outubro, afirma de modo contundente que o espaço onde ocorrera o massacre estava “inidôneo para a perícia”, constatando alterações como o sumiço de projéteis e estojos e movimentação dos corpos. Ele conclui: “a disposição dos corpos, bem como a completa falta de segurança e higiene no local foram fatores que, aliados à já aludida falta de energia, impediram a fotografação de identificação individual dos cadáveres”.
A inconsistência de informações sobre o número e identidade de mortos e feridos é uma realidade que perdura até os dias de hoje. As dificuldades impostas à perícia à época e a precariedade persistente dos registros e dados do sistema penitenciário paulista propiciaram o desaparecimento das informações sobre a identidade das vítimas e do número de sobreviventes. Em outras palavras, há, no massacre do Carandiru, um contingente desconhecido de pessoas que foram mortas e apagadas de quaisquer registros. São vítimas que foram desaparecidas.
Apenas em 2022, 30 anos após o massacre, o STF reconheceu o trânsito em julgado da condenação de 74 policiais envolvidos, em penas que somadas ultrapassam 21.500 anos de condenação. No mesmo ano, a anistia para os policiais foi aprovada pela Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados, sinalizando que a falta de transparência sobre os fatos ocorridos e a demora na imputação de responsabilidade pelo massacre é elemento chave para um processo de revisionismo histórico.
De outra parte, nenhum dos sobreviventes ou familiares das vítimas foram procurados ou sequer tiveram qualquer apoio do Estado ou da justiça brasileira para garantir que seus direitos fossem cumpridos e respeitados. Mesmo após o reconhecimento da responsabilidade do Estado brasileiro pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, com a recomendação de medidas de indenização e identificação de vítimas, nenhuma ação estatal foi tomada nessas três décadas para apoio aos familiares e aos sobreviventes. O que sabemos, por meio de pesquisa conduzida pelo Núcleo de Estudos sobre o Crime e a Pena da FGV Direito SP, é que apenas 25 dos 75 familiares que ingressaram com pedidos de indenização receberam efetivamente os valores.
É sintomático que o dia 02 de outubro de 2023 seja marcado por violência e apagamento. Não há como enfrentar a violência de Estado e seus desdobramentos sociais sem a adequada preservação da memória e a busca pela verdade. As ações estruturais preconizadas pelo STF devem compreender a reconstrução de chacinas e massacres protagonizados por agentes estatais, revertendo a estratégia de apagamento hoje em curso.
*As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional da FGV.
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