O aborto legal e a entrega voluntária como escolhas legítimas da vítima de estupro
Recentemente, dois casos ocuparam, num curto espaço de tempo, o noticiário e o debate público: primeiro, o tratamento dado pelo Poder Judiciário ao caso de uma criança de 11 anos que desejava a interrupção da gravidez. Segundo, a revelação, em redes sociais, de que uma jovem mulher teria entregue seu bebê recém-nascido para adoção, tendo se recusado mesmo a vê-lo. Em comum, temos que nos dois casos a gravidez resultou de estupro e, também nos dois casos, o estupro foi apenas a primeira das violências que essas duas mulheres - uma ainda criança e outra no início da vida adulta - viriam a sofrer, num ciclo onde a revitimização e a responsabilização da vítima pela violência sofrida se alternam com a espetacularização do sofrimento alheio.
Analisemos a situação da criança que engravida e deseja interromper a gravidez. Vejamos: a legislação é clara ao estabelecer como limite do consentimento para a relação sexual a idade de 14 anos. Abaixo deste limite, temos o crime de estupro de vulnerável, previsto no art. 217-A do Código Penal. E não importa a idade do agressor: a infração penal estará configurada, ainda que o agressor seja inimputável por ser menor de idade e que não se tenha crime, mas ato infracional em razão da aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 27 do Código Penal e art. 103 e 104 do ECA).
Sendo a gravidez resultante de estupro, temos uma hipótese legal onde a interrupção da gravidez é permitida: ainda que, em regra, o aborto seja crime no Brasil (art. 124 a 127 do CP), há dois casos, excepcionais, onde o aborto é autorizado: em caso de risco de morte para a gestante ou se a gravidez resultar de estupro e a gestante ou, se menor de idade, seu representante legal o autorizarem (art. 128 do CP). Ressalte-se que a lei não estabelece qualquer limite temporal para a realização do aborto. Portanto, qualquer tentativa de se restringir ou impossibilitar a realização do aborto legal sob alegação de que a gestação já estaria avançada é uma forma de se negar o cumprimento de um direito. Ainda, o Brasil é signatário do Pacto de São José da Costa Rica e se submete ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Os casos contenciosos apreciados pela Corte Interamericana permitiram um assentamento jurisprudencial no mesmo sentido: atentar contra os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres constitui uma das mais graves formas de violência de gênero.
Se a vítima for criança, entra em ação o sistema de proteção trazido principalmente pelo ECA, que dá a crianças e adolescentes direito a proteção integral e prioridade absoluta no atendimento de seus interesses. A criança é sujeito de direitos, e não objeto da vontade dos pais ou do paternalismo estatal. Se a criança ou seu responsável legal manifestarem a vontade inequívoca pela interrupção da gravidez, que, como já vimos, é autorizada por lei, o aborto deve ser realizado. Se o hospital negar a realização do procedimento, respaldado em norma interna, teremos ato de violência institucional praticado contra a criança. O hospital não pode limitar a realização do aborto legal a um número de semanas da gestação, da mesma forma como não pode condicionar a realização do aborto à apresentação, por exemplo, de boletim de ocorrência. Nada disso é exigido por lei, o que torna ilegal sua exigência, que funciona como subterfúgio para negar o respeito a um direito.
Quando qualquer direito é violado, tem-se a garantia constitucional do acesso à justiça. O Estado, por meio do Poder Judiciário, não pode jamais atuar como perpetrador de mais uma violência cometida contra esta vítima. O Estado-Juiz não pode substituir a decisão do legislador (que decidiu pela permissão do aborto no caso de estupro) por uma posição moral, subjetiva, sua. Falta-lhe legitimidade democrática para tanto: não tendo sido eleito, não pode impor à sociedade sua visão de mundo, quando esta mesma sociedade já se decidiu, por meio do Poder Legislativo, de outra forma. A meu ver, o julgador não poderia nem mesmo opor a exceção de consciência que poderia amparar profissional da medicina que se recusasse a realizar o aborto legal: o juiz tem o dever de julgar, e tem o dever de julgar de acordo com as leis em vigor. Ele está diretamente vinculado e sujeito à Constituição Federal, de forma que suas decisões não podem violar direitos fundamentais dos sujeitos em questão. E que não se argumente a favor do direito à vida do feto: é verdade que o Código Civil protege os direitos do nascituro, que se consolidam com o nascimento com vida. Porém, o legislador, nesta colisão entre diferentes direitos fundamentais, já decidiu pela proteção da mulher vítima do estupro, autorizando a interrupção da gravidez.
Não há espaço, pois, para julgamentos de cunho moral se a lei já decidiu. Finalmente, a Lei 13.432/2017 estabeleceu o sistema de garantia dos direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência. Esta lei estabelece uma série de direitos e medidas que visam proteger a criança e adolescente e impedir a revitimização, vista, inclusive, como uma forma de violência institucional (art. 4o, inciso IV). É direito, por exemplo, da criança e adolescente vítima de violência receber tratamento digno, ser ouvido e expressar seus desejos, ser resguardado e protegido de sofrimento, conviver em família. Ainda, a criança tem direito ao chamado depoimento especial (art. 8o a 12 da lei), que infelizmente, ainda não é observado na maior parte das varas do país. Ao se afastar a criança do convívio familiar, ao se tentar convencê-la a manter a gravidez, ao não se respeitar a vontade expressada pela criança, o Estado deixa de atender quem deveria proteger com prioridade absoluta; pior, revitimiza-a, praticando nova violência contra a vítima.
Por outro lado, qualquer mulher, vítima ou não de violência, pode, legalmente, entregar seu filho para adoção. A entrega voluntária é prevista pelo art. 19-A do ECA. A lei também determina como acontecerá a colocação deste bebê em família substituta com o objetivo de ser concretizada sua adoção. A adoção é, em última instância, uma medida de proteção de crianças (e adolescentes) para, novamente, garantir sua proteção integral. Não cabe, portanto, julgamento moral desta decisão que, ainda que muito difícil, foi tida como legítima pelo legislador e, pois, pela sociedade. A publicação de fatos desta natureza, ou seja, a divulgação dos dados da gestante / parturiente e, pior, da criança configura violação do direito fundamental à privacidade e proteção da intimidade e dano que deve ser reparado pelos ofensores. A revitimização imposta pelo escrutínio público de uma decisão tomada após um estupro é, por óbvio, uma nova violência causada à vítima.
Tanto o aborto legal quanto a entrega voluntária para adoção são direitos previstos expressamente em lei, que não dão margem à dúvida ou interpretação - não quanto à sua existência. São duas decisões legítimas, que devem ser tomadas pela mulher em questão, e por mais ninguém. A reprovação moral de qualquer uma delas não apenas é ilegal, como também causa à vítima nova violência, o que é inadmissível. Meninas e mulheres não podem continuar sendo invisibilizadas e revitimizadas, ou nossa sociedade seria cumplíce e partícipe de um ciclo de violência que não teria mais fim.
Autores
Vivianne Ferreira