Os arautos do novo reformismo
Não há sistema político perfeito, mas a agenda atual de reformas tende a gerar mais fragmentação,instabilidade e ter como corolário final a produção de um clima propício à demanda por um salvador dapátria autoritário.
Quando um problema público se torna de difícil resolução, há anos surge um mantra no país: é precisofazer uma reforma política. Mas, ao contrário do que propaga o senso comum, o Brasil fez várias delas desde a Constituição de 1988. Os resultados dessas transformações foram variados e, na verdade, só podem ser avaliados em sua interligação, e não isoladamente, e por meio da análise de quais são os propósitos dos reformistas. O mudancismo está de volta na boca de importantes lideranças. Duas perguntas se tornam inadiáveis: o que querem os defensores das novas mudanças institucionais e quais os possíveis efeitos de tais alterações?
Para desmascarar a visão de big bang que alimenta o debate da reforma política, vale relembrar, deforma sintética, algumas das transformações institucionais pelas quais o país passou desde 1988.Depois de recusar o sistema parlamentarista em plebiscito, em 1993, e consagrar eleições casadas paraos planos nacional (presidente e Congresso Nacional) e estadual (governador e Assembleias Legislativas), o ímpeto reformista ficou marcado pela aprovação do instituto da reeleição, no final do primeiro governo FHC, numa toada de fortalecimento do Poder Executivo em todas as esferas federativas.
Mais adiante, a agenda mudancista voltou-se, mais de uma vez, à alteração das regras das medidasprovisórias, numa busca de equilíbrio dos Poderes. Houve ainda reformas para tentar reduzir acorrupção eleitoral, como a Lei da Ficha Limpa e posteriormente a decisão do STF que restringiu fortemente o financiamento privado de campanhas. No plano do sistema eleitoral, houve a alteração do modelo de coligações eleitorais e da representação congressual dos partidos. Em menor medida, ocorreram também reformas do Sistema de Justiça, como a criação do CNJ e mesmo a mudança da aposentadoria compulsória dos ministros do Supremo - que são obrigados a se aposentar aos 75 anosde idade (antes era aos 70).
Por fim, o que mais chamou a atenção nos últimos anos foram reformismos vinculados ao fortalecimentodo Congresso Nacional frente ao Executivo federal. Nesta lista estão, principalmente, a modificação da legislação sobre vetos presidenciais e um conjunto de leis destinadas a ampliar o poder de emendas doscongressistas. No contexto dessa onda reformista pró-Legislativo, vicejam hoje três propostas: a primeira diz respeito às alterações na governança do STF, como o fortalecimento de sua colegialidade e,sobretudo, a criação de mandatos aos ministros do Supremo; a segunda se refere à proposição do fim da reeleição para os cargos do Executivo; e, finalmente, como a medida mais ampla desse pacote, aadoção do semipresidencialismo.
O conjunto das reformas políticas feitas pelo país nos últimos 30 anos pode ser classificado em trêstipos, que em boa medida representam três ondas mudancistas. O primeiro tipo é o do reformismo emprol do poderio do Executivo, hegemônico durante os anos 1990 e 2000, que visava dar maior capacidade governativa e estabilidade ao país depois de dois períodos bastante conturbados dar e democratização - os governos Sarney e Collor. Depois, como segunda tipologia, vem uma lista de diversas mudanças institucionais visando aperfeiçoar a representação e a accountability democrática, como são os casos de alterações no sistema eleitoral, de aperfeiçoamentos no Sistema de Justiça, decombate à corrupção ou mesmo modificações que ampliaram a participação da sociedade civil no jogodemocrático e nas políticas públicas.
A tipologia que melhor descreve a atual onda mudancista é uma terceira: ela diz respeito atransformações voltadas ao fortalecimento do Congresso Nacional vis-à-vis o Poder Executivo, além degerar um movimento centrífugo de reforço do sentido individual do mandato dos parlamentares. Interessante notar que a reforma eleitoral aprovada em 2017 visava reduzir o número de partidos e incentivar uma lógica política mais centrípeta, porém, as reformas do emendismo venceram esse jogo, gerando um modelo mais baseado no corporativismo parlamentar e, ao mesmo tempo, na sua expressão mais individualista e fragmentada de representação.
As propostas reformistas atuais têm nesta terceira onda um importante balizador. Com uma feição que combina corporativismo e individualismo parlamentar, o vetor pró-Legislativo é o que explica, em parte, o caminho de reformas que está sendo proposto. Entretanto, há algo além disso: parte da explicação damotivação para o novo ímpeto mudancista está na polarização bolsonarista e no seu projeto antidemocrático.
O bolsonarismo tem um projeto de oposição muito claro: atuar não somente contra o governo lulista, mas também contra elementos da estrutura institucional, com o objetivo de fragmentar o poder e, no limite, desestabilizá-lo. O ataque ao Supremo não tem como motivação apenas uma revanche contra a reaçãode alguns de seus ministros diante do projeto de golpe de Estado comandado pelo presidente Bolsonaro.Também há uma percepção de que o enfraquecimento do STF é uma forma de ter menos empecilhos para futuros caminhos autoritários numa possível volta ao poder dos bolsonaristas e seus satélites - e infelizmente parte da direita virou apenas um apêndice mais limpinho do bolsonarismo.
O semipresidencialismo e o fim da reeleição, à primeira vista, teriam um sentido oposto ao desejado pelo bolsonarismo. Afinal, seriam formas mais favoráveis tanto ao fortalecimento do Congresso frente ao Executivo, como ao enfraquecimento de líderes locais que têm sido reeleitos e criado um poderio próprio, mas que com a possibilidade de um só mandato se tornariam mais dependentes dos deputados federais. Eis aqui o sentido da agenda de reformas do Centrão. É um modelo lógico que deriva da força adquirida pelo mudancismo emendista.
Entretanto, a profundidade dessas duas reformas e seus efeitos sistêmicos são muito mais amplos eincertos do que aumentar a fatia dos parlamentares no Orçamento da União. Há grandes chances de essa agenda reformista gerar dois resultados indesejáveis aos líderes do Centrão. O primeiro é aumentar a responsabilidade governativa do Congresso Nacional sem que ele tenha um mandato referendado diretamente e nacionalmente pelo eleitorado. O impacto da pressão social que advirá desse descompasso tenderá a ser enorme. Países que adotaram o semipresidencialismo têm partidos nacionais muito mais fortes e enraizados na sociedade.
Desse modo, o primeiro resultado indesejável dessa agenda reformista, especialmente uma possívelinstalação do semipresidencialismo, pode ser o aumento da instabilidade governativa, tal qual houve no período Sarney, o que gerou demandas por salvadores da pátria. Advinha quem mais se interessaria por uma situação que gerasse pressões antissistêmicas e por uma liderança popular forte, quiçá com contornos mais autoritários? Muitos dos líderes democráticos que acham o semipresidencialismo ética e esteticamente melhor do que o presidencialismo de coalizão podem estar chocando o ovo da serpente.
Outro resultado indesejável advém de um possível fim da reeleição. Acredita-se que tal medida reduziriaos abusos do governante de plantão e abriria mais portas à alternância e a novos quadros. Quem pensa de tal maneira se esquece que, antes, a luta se dava internamente aos grupos de uma forma fratricida, o que gerava um uso ainda mais indiscriminado dos instrumentos do poder. Vale recordar da frase do governador paulista Orestes Quércia quando elegeu o inexpressivo Fleury Filho: quebrei o Estado, mas elegi meu sucessor.
É uma ilusão pensar que o fim da reeleição e o mandato de cinco anos vão disciplinar o uso eleitoral das armas governamentais. Não era assim antes, e nada diz que o será num contexto de aumento do clientelismo com a ascensão do Centrão e de fortalecimento do autoritarismo com a emergência do bolsonarismo. Além disso, e não menos importante, criou-se um recall em relação ao segundo mandato,expondo todas os problemas e podres do incumbente, o que o tornou necessariamente mais accountable, mesmo com todos os problemas vinculados à utilização da máquina pública.
Não há sistema político perfeito, mas a agenda atual de reformas tende a gerar mais fragmentação, instabilidade, dificuldade de responsabilização e, o pior de tudo, ter como corolário final a produção de um clima propício à demanda por um salvador da pátria autoritário. Se as reformas iniciadas na décadade 1990 juntavam principalmente as forças advindas da redemocratização, especialmente tucanos e petistas, a proposição atual advém de grupos muito menos preocupados com o aperfeiçoamento da democracia. Isso deveria ser levado em conta antes de qualquer debate reformista.
Reformas institucionais mais profundas só devem ser feitas em situações de ampla legitimidade, combase em evidências e tendo como parâmetro o efeito sistêmico das mudanças. Afinal, o semipresidencialismo valeria para todos os três entes federativos? Qual seria a consequência do descasamento do mandato do presidente em relação aos congressistas? Qual eleitor seria o centro das decisões, o do ano da disputa presidencial ou o da data da eleição legislativa? A resposta a essas perguntas mostra o grau de incerteza que o país pode estar semeando. E o provável vencedor desse reformismo pode não ser a democracia.
*As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional da FGV.
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