A busca do legado na diplomacia
A ida de Lula aos Estados Unidos é a terceira viagem internacional do presidente em pouco mais de um mês de governo. Trata-se de feito pouco usual, ainda mais se considerarmos que o destino é dos mais estratégicos para qualquer governante.
Tem um adágio que diz que toda política externa é política interna: as relações diplomáticas e comerciais de um país nada mais seriam do que a extensão dos interesses domésticos de seu governo e grupos a ele associados. No Brasil, contudo, a diplomacia muitas vezes foi tratada como atividade desconectada do cotidiano político. Muitas análises sobre política externa ainda pecam por não aplicar o velho ditado à realidade brasileira.
A ida de Lula aos Estados Unidos é a terceira viagem internacional do presidente em pouco mais de um mês de governo. Trata-se de feito pouco usual, ainda mais se considerarmos que o destino é dos mais estratégicos para qualquer governante. A visita, naturalmente, terá implicações para a relação política e os fluxos econômicos no longo prazo. Mas Lula embarca para Washington com uma missão essencialmente caseira: a de estruturar, viabilizar e legitimar seu terceiro mandato.
A essa altura, sobretudo à luz das repercussões dos atentados de 8 de janeiro, duas coisas já estão claras a respeito da nova gestão. A primeira delas é que o grande objetivo de Lula, reconciliar o país acabando com a polarização radical, dificilmente será cumprido em quatro anos. Tanto as pesquisas de opinião, que indicam significativa desaprovação do governo, quanto a dinâmica legislativa, marcada pela resiliência do bolsonarismo, mostram que as batalhas serão mais duras do que se imaginava.
A segunda é que Lula, mesmo não contando com a boa vontade dos mercados ou de parte expressiva da sociedade, é uma espécie de unanimidade nos círculos de poder globais. Sua vitória contra Bolsonaro foi um alento para a maioria das lideranças ocidentais, seja porque estancou o avanço político da extrema direita num de seus terrenos mais férteis ou porque sinalizou o retorno do Brasil a compromissos críticos com a agenda ambiental ou de direitos humanos.
Em seu terceiro mandato, Lula governará, em larga medida, de fora para dentro. O encontro com Biden é um ato tão simbólico quanto a marcha com governadores no dia seguinte à devastação em Brasília. Ele indica não só o desejo brasileiro de reativar relações estáveis e construtivas com seu parceiro mais longevo, após uma década de turbulências variadas, mas também a disposição norte-americana de ter no governo brasileiro um aliado de primeira hora.
Os dois presidentes sabem bem que essa aliança não será mera formalidade ou jogada publicitária. Pelo contrário, será estruturada em torno de três temas estratégicos para ambos os países: questões de gênero e raça, mudanças climáticas e afirmação de valores e instituições democráticas. Mais que cooperação diplomática, Brasil e Estados Unidos têm muito a compartilhar em termos de políticas públicas, experiências locais e intercâmbio de informações. Afinal, o desafio comum a Lula e Biden é justamente a extrema direita, fruto da radicalização acelerada das respectivas sociedades.
Do ponto de vista do presidente brasileiro, portanto, a viagem traz implicações práticas para sua legitimidade política. De um lado, pode ajudar no avanço de agendas caras ao governo petista. De outro lado, Washington poderá ser uma escala importante para que Lula construa seu grande legado político pelo campo da diplomacia. Dada a complexidade da geopolítica global, esse legado dificilmente passará pela mediação do conflito ucraniano, na linha da proposta ambiciosa (e aparentemente irrealista) de se criar uma cúpula para a paz.
Sobre a mesa do encontro, outro tema poderá servir de substrato para eternizar Lula como o presidente que alçou o Brasil ao mundo: a Venezuela. Ajudar a resolver a crise humanitária, política e econômica do país vizinho será fundamental para que o Brasil reative sua liderança sul-americana e reconstrua iniciativas regionais deixadas para trás. De quebra, Lula deixará claro que sua esquerda democrática não se confunde com o populismo autoritário de Maduro. No fim das contas, essa é a mensagem que muitos aqui dentro querem – e precisam – ouvir.
*As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional da FGV.
Do mesmo autor
- 10/10/2023Guilherme Casarões