O corte das verbas das universidades públicas e o futuro do ensino superior no Brasil

Bem ou mal, houve um planejamento inadequado, falta de diálogo com as próprias instituições e bloqueios ou cortes que abalaram não só o ensino superior, mas a própria educação pública, inclusive afetando os livros didáticos para o início do ano letivo.

Políticas Públicas
14/12/2022
Cláudia Costin

Enquanto a população assistia, ainda com esperanças, o jogo do Brasil, no dia 28 de novembro deste ano, o MEC teve 244 milhões do orçamento das universidades federais bloqueados. Segundo o ministério, a iniciativa foi do Ministério da Economia e as negociações prosseguiram com desbloqueios e “rebloqueios” (se posso usar este neologismo) até que prevaleceu o bom senso e parte das verbas retornaram aos cofres das instituições.

Em tempos de pós verdade, essa foi a percepção que pudemos ter de uma movimentação de fim de ano que trouxe retardos no pagamento de bolsistas – lembrando que são, muitas vezes, os estudantes de mestrado, doutorado e “pós doc” que fazem pesquisas no país – contas de luz e água e pagamentos de empregados terceirizados.

Há, claro, hipóteses mais cruéis sobre vinganças frente a uma resistência fortes das escolas de ensino superior públicas ou, ainda, a uma percepção de alguns dirigentes sobre uma guerra ideológica que deveria ser travada com elas, por esposarem um pretenso “marxismo cultural”. Mas prefiro ficar com a narrativa da imperícia na gestão dos recursos públicos e das negociações com a área política.

Bem ou mal, houve um planejamento inadequado, falta de diálogo com as próprias instituições e bloqueios ou cortes que abalaram não só o ensino superior, mas a própria educação pública, inclusive afetando os livros didáticos para o início do ano letivo.

Sim, crises nos obrigam, por vezes, a adotar ações extremas, mas num clima menos belicoso, costumamos ter resultados melhores. Não me parece que o que ocorreu seja resultado de outra coisa que má condução da política fiscal, de uma leitura política inadequada (para dizer o mínimo) associada a desmandos autoritários.

O erro se fez claro e teve que ser, em alguma medida, corrigido por conta da pronta reação de organizações de reitores, professores e da sociedade civil. Mas a sensação de que houve algum tipo de vingança ou de incúria permaneceu.

E os efeitos não foram mitigados pelo anúncio da liberação de recursos. De fato, o pagamento dos funcionários terceirizados será impactado pelos atrasos, perto das festas de fim de ano, assim como o pagamento de bolsas, que deve ocorrer no dia 13 deste mês. O planejamento da manutenção e a aquisição de insumos para laboratórios pode afetar prazos compromissados e a qualidade de pesquisas em andamento e o próprio processo de ensino, incluindo a segurança de profissionais e alunos. Quem trabalha com educação sabe que pequenas reformas e manutenção preventiva tendem a ocorrer em períodos de férias escolares, portanto em janeiro.

Isso tudo pode ser corrigido no tempo, sem dúvida, e certamente teremos lições aprendidas deste triste processo de descuido com o ensino superior.

Passada a tormenta, precisaremos focar em alguns pontos essenciais para avançar na construção de uma universidade que seja parte atuante na construção de um desenvolvimento inclusivo e sustentável a longo prazo para o Brasil. A universidade brasileira deverá nos próximos anos;

- Combinar excelência com equidade, ampliando o acesso de setores anteriormente excluídos e garantindo-lhes a permanência e conclusão dos estudos, mantendo padrões elevados de expectativas de aprendizagem e de qualidade das pesquisas;

- Diversificar os modelos de instituições, fomentando a criação não só de universidades de pesquisa, como de educação terciária para os adultos que trabalham;

- Prosseguir nos esforços de internacionalização e de estabelecimento de parcerias com instituições em outros países, como preconiza o Pacto de Bolonha;

- Formar as juventudes para o novo mundo do trabalho, que emerge com o advento da Inteligência Artificial e a acelerada digitalização;

- Conectar-se mais com o setor produtivo e a sociedade civil, inclusive em sua governança, para evitar que a autonomia, tão importante para as universidades, se transforme em autorreferenciamento ou seja, uma universidade que se veja como um fim em si mesma;

- Aperfeiçoar o sistema de avaliação e acreditação de IES, para assegurar maiores incentivos à inovação e criatividade no ensino superior;

- Favorecer a consolidação de uma extensão que contemple o impacto social, com base na Agenda 2030, aprovada pela Assembleia Geral da ONU em 2015 e incorporada às análises do setor do Times Higher Education.

Afinal, faz sentido aproveitar a presente crise, tão evidente no setor, para transformar a universidade e torná-la mais inclusiva, aberta à sociedade e a parcerias com o resto do mundo, possibilitando também mais inovação e experimentação que contribuam para um desenvolvimento inclusivo e sustentável a longo prazo.

*As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional da FGV.

Autor(es)

  • Cláudia Costin

    Diretora Geral do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais (FGV CEIPE). Integra também a Comissão Global sobre o Futuro do Trabalho da Organização internacional do Trabalho (OIT), das Nações Unidas. Secretária-executiva e Ministra da Administração e Reforma do Estado entre 1995 e 2000. Secretária de Cultura do Estado de São Paulo, entre 2003 e 2005, e Presidente da Promon-Intelligens, empresa voltada para e-learning. Atuou como consultora em políticas públicas e modernização do Estado, apoiando diversos países africanos como Angola, Cabo Verde, Guiné Bissau Moçambique e São Tomé e Príncipe. Professora universitária, tendo atuado em instituições como PUC-SP, FGV, INSPER e, como professora visitante, na École Nationale d’Administration Publique (Canadá) e Harvard (EUA).

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