Decisão do STF sobre porte de maconha para consumo: impactos e desafios para a política de drogas no Brasil

Além de descriminalizar o porte de maconha para consumo próprio, o STF buscou estabelecer uma distinção entre o uso e o tráfico baseada na quantidade de maconha apreendida com a pessoa

Políticas Públicas
05/07/2024
Luisa Moraes Abreu Ferreira

Na semana passada, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a criminalização do porte de maconha para consumo próprio violava os direitos fundamentais à privacidade e à intimidade[1]. O pressuposto da decisão é de que é ilegítima a intervenção estatal na esfera de liberdade individual de alguém para supostamente proteger o próprio titular dessa liberdade, pois as pessoas deveriam ser livres para tomar suas próprias decisões individuais (ainda que arriscadas) e cometer erros, desde que não coloquem outros em perigo – que é a essência da ideia de autodeterminação.

Descriminalizar, contudo, não significa legalizar. O porte de maconha para consumo individual continua sendo ilícito (contrário ao direito), mas não é mais uma infração penal. De acordo com o que decidiu o STF, uma pessoa que estiver em posse de maconha para consumo individual será encaminhada para a delegacia de polícia[2], terá a substância apreendida e poderá receber as sanções administrativas de advertência sobre os efeitos da droga e medida educativa de comparecimento à programa ou curso educativo.

O que muda a partir de agora: a autoridade policial não mais poderá prender o usuário em flagrante e não poderá ser aplicada a sanção de prestação de serviços à comunidade (considerada uma pena corporal e, portanto, uma sanção penal).  Além disso, a conduta não terá nenhuma repercussão criminal, como, por exemplo, caracterização de reincidência.

Além de descriminalizar o porte de maconha para consumo próprio, o STF buscou estabelecer uma distinção entre o uso e o tráfico baseada na quantidade de maconha apreendida com a pessoa. A partir de agora, quem for flagrado com até 40g ou 6 pés de maconha será presumido usuário. Para ser considerada usuária, a pessoa não deve apresentar sinais de intenção de vender, o que pode ser extraído de circunstâncias como como embalagens suspeitas, variedade de substâncias e posse de equipamentos comerciais e contatos relacionados ao tráfico.

A fixação de critérios mais objetivos para distinguir o uso e o tráfico é salutar. Inúmeras pesquisas apontam para um viés racial nas abordagens policiais o que faz com que pessoas negras sejam consideradas traficantes em situações nas quais pessoas brancas são classificadas como usuárias[3]. De acordo com pesquisa realizada pelo Ipea, o perfil da maioria dos réus por crimes de tráfico de drogas são jovens, de baixa escolaridade, negros e com quantidades relativamente pequenas de drogas[4].

A decisão, contudo, é tímida e incoerente.

Tímida porque estabelece apenas uma presunção que pode ser relativizada no caso concreto, diante de indícios de “mercancia”. Nada impede, portanto, que a polícia possa continuar a enquadrar usuários como traficantes.

No início do ano, dois homens acusados de tráfico de drogas, em Santos, foram absolvidos após câmeras corporais dos policiais militares envolvidos na abordagem colocarem em xeque a versão dos policiais. Os policiais relataram, no inquérito e no processo, que os dois suspeitos abandonaram mochilas contendo drogas, balança de precisão e uma arma em um carrinho de lanches. Foram presos e processados por tráfico de drogas e porte de arma de fogo. As imagens das câmeras corporais, obtidas apenas no final do processo, mostraram que as sacolas foram encontradas longe dos réus, em um terreno abandonado e levadas até eles pelos policiais. A juíza afirmou que “essa circunstância de fato – de considerável relevância – não foi referida nos relatos dos policiais militares aqui ouvidos, o que traz sérias consequências a respeito da idoneidade da prova e da demonstração da autoria dos ilícitos penais”[5]. Os réus foram absolvidos.

Casos como esses poderão continuar sendo enquadrados como tráfico, mesmo que a quantidade de drogas seja inferior a 40g, pois o STF permitiu a relativização da presunção sempre que houver elementos indicativos do “intuito de prática mercantil”, sendo que esses elementos são extraídos, em geral, a partir do relato dos policiais sobre a abordagem.

A decisão do STF é também incoerente, pois se a questão central diz respeito à autodeterminação e à possibilidade de cada um escolher os riscos que decide correr, não há sentido na limitação da decisão apenas à maconha. Os Ministros do STF, no julgamento, foram contundentes sobre os riscos à saúde de quem consome maconha. Portanto, utilizando a lógica da própria decisão, não há sentido na afirmação da constitucionalidade da criminalização do consumo de outras drogas também nocivas à saúde.

Reação do Congresso

A discussão sobre a criminalização do consumo de drogas não se encerra com a decisão do STF. Tramita no Congresso Nacional uma Proposta de Emenda Constitucional que busca incluir, na Constituição, uma vedação expressa à descriminalização do consumo de qualquer droga, em qualquer quantidade.

Se aprovada, a Emenda Constitucional se sobrepõe à decisão do STF e o porte de maconha para consumo pessoal voltará a ser considerado crime. Contudo, se isso acontecer, é provável que a questão volte ao STF, que poderá decidir pela inconstitucionalidade da emenda constitucional. Isso porque os direitos à privacidade e à intimidade são considerados cláusulas pétreas – isto é, garantias individuais que não podem ser restringidas nem mesmo por  Propostas de Emenda à Constituição.

De qualquer forma, o embate entre STF e Congresso Nacional sobre a constitucionalidade do consumo individual de maconha não muda o quadro de falência da política de guerra às drogas. É preciso discutir, com seriedade, medidas para lidar com  o narcotráfico e com facções criminosas e milícias no Brasil, como o monitoramento de grandes carregamentos e investigação do fluxo de dinheiro. Além disso, independentemente da descriminalização do consumo de maconha, é necessário estabelecer critérios para a abordagem policial e tornar obrigatório o uso de câmaras corporais – medida que permite o controle da legalidade da atuação policial.

Ao concentrarmos os esforços da atuação policial para prender jovens pobres e periféricos (e em geral, negros) - sejam eles pequenos traficantes ou não – as substâncias ilícitas continuarão a circular livremente no país. E esses jovens continuarão a ser recrutados nas por grupos criminosos nas prisões, alimentando o ciclo da criminalidade.


[1] STF, Recurso Extraordinário nº 635.659, julgado em 26/06/24.

[2] Pelo menos até regulamentação pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

[4] INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Perfil do processado e produção de provas nas ações criminais por tráfico de drogas: relatório analítico nacional dos tribunais estaduais de justiça comum. Brasília, DF: Ipea, 2023. 107 p. DOI: http://dx.doi.org/10.38116/ri221151.Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/12376/1/RI_Perfil_produc...

[5] Sentença na ação penal nº 1502367-61.2023.8.26.0536, proferida em 18/12/23 pela juíza Silvana Amneris Rôlo Pereira Borges, da 6ª vara criminal da Comarca de Santos/SP (páginas 17 e 18).

*As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional da FGV.

Autor(es)

  • Luisa Moraes Abreu Ferreira

    Advogada criminalista e professora de Direito Penal e Processo Penal na FGV Direito SP. Doutora em Direito e Desenvolvimento pela Escola e mestre em Direito Penal pela USP.

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