Em defesa da democracia

O que une as diferenças são o respeito pela liberdade e a preservação da vida e dos direitos de todos, incluindo as minorias. Só devemos ser intolerantes com quem não tolera os valores democráticos.

Administração
04/10/2021
Marco Antonio Carvalho Teixeira

O que caracteriza um líder democrático não é apenas o fato de ter sido eleito. Comporta também um conjunto de questões que têm a ver com saber respeitar as diferenças, preservar o direito à organização e manifestação por parte de todos os agrupamentos sociais, bem como valorizar a interlocução que os diferentes grupos devem ter junto às estruturas decisórias do Estado no que se refere às políticas públicas, à produção legislativa e, também, à proteção por parte dos sistemas de segurança e de justiça.

Por que é importante trazer essa questão à tona nesse momento no Brasil? A razão é que vem se propagando a ideia de que basta que um governo seja legitimamente eleito para que o seu núcleo de poder possa tomar a decisão que julgar mais importante, acreditando já ter obtido tal autorização da sociedade no momento do pleito. Ledo engano. Um governo nunca é eleito pelo conjunto da sociedade, mas sim por parte dela que confiou seu voto no candidato vencedor. Uma vez que toma posse, o chefe do Executivo passa a ser governante de todos, inclusive daqueles que votaram no candidato derrotado. Essa é uma das máximas da democracia e do líder que se diz democrático: uma vez eleito, é, de fato, o governante de todos e de todas.

No Brasil, observa-se que essa máxima tem sido deixada de lado. Quando se olha para as relações federativas do governo central com estados e municípios, o mais comum tem sido priorizar aliados e dificultar o trabalho de governadores e prefeitos de projetos políticos diferentes. Pouco importa a pauta que está em questão. O enfrentamento da Covid-19 escancarou esse processo e abriu um grande debate não apenas acerca do funcionamento da coordenação federativa brasileira, mas também sobre o espírito republicano e até mesmo humanitário que vem orientando cada uma das decisões. Em muitas delas, vindas de governantes de diferentes partidos, os projetos de poder para 2022 falaram mais alto do que a urgência em enfrentar prioritariamente a pandemia.

Esse problema expressa-se não apenas no âmbito das relações entre a classe política na disputa pelo poder. Decisões que prejudicam minorias ao retirarem direitos e proteção social têm sido encaminhadas à revelia de um debate público mais amplo e em benefício claro de grupos que são mais próximos do núcleo de poder. O debate sobre o projeto que trata do marco temporal em relação à demarcação de terras indígenas, assim como o do projeto de lei da grilagem, mostra claramente a assimetria de poder existente na discussão dessa questão. Sobram interesses econômicos e de poder em detrimento do debate sobre os povos originários.

Por fim, cabe lembrar que o debate democrático foi e sempre será cercado pelo conflito de ideias em torno de diferentes visões sobre uma mesma questão. Quem se quer apresentar como líder democrático tem de escutar o contraditório, estar disposto a construir acordos e até mesmo a mudar de posição em função do debate. O que une as diferenças são o respeito pela liberdade e a preservação da vida e dos direitos de todos, incluindo as minorias. Só devemos ser intolerantes com quem não tolera os valores democráticos.

O artigo original foi publicado na revista RAE, acesse o link.

*As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional da FGV.

Do mesmo autor

Autor(es)

  • Marco Antonio Carvalho Teixeira

    Pesquisador do Centro de Estudos em Administração Pública e Governo (CEAPG) da Fundação Getulio Vargas. É professor-adjunto e pesquisador do Departamento de Gestão Pública (GEP) da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getulio Vargas de São Paulo (FGV EAESP), onde leciona nos cursos de graduação em Administração Pública e Administração de Empresas, bem como no mestrado e doutorado em Administração Pública e Governo e, também, no mestrado Profissional em Gestão e Políticas Públicas. Possui mestrado em Ciências Sociais e doutorado na mesma área pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

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