Em defesa da democracia
O que caracteriza um líder democrático não é apenas o fato de ter sido eleito. Comporta também um conjunto de questões que têm a ver com saber respeitar as diferenças, preservar o direito à organização e manifestação por parte de todos os agrupamentos sociais, bem como valorizar a interlocução que os diferentes grupos devem ter junto às estruturas decisórias do Estado no que se refere às políticas públicas, à produção legislativa e, também, à proteção por parte dos sistemas de segurança e de justiça.
Por que é importante trazer essa questão à tona nesse momento no Brasil? A razão é que vem se propagando a ideia de que basta que um governo seja legitimamente eleito para que o seu núcleo de poder possa tomar a decisão que julgar mais importante, acreditando já ter obtido tal autorização da sociedade no momento do pleito. Ledo engano. Um governo nunca é eleito pelo conjunto da sociedade, mas sim por parte dela que confiou seu voto no candidato vencedor. Uma vez que toma posse, o chefe do Executivo passa a ser governante de todos, inclusive daqueles que votaram no candidato derrotado. Essa é uma das máximas da democracia e do líder que se diz democrático: uma vez eleito, é, de fato, o governante de todos e de todas.
No Brasil, observa-se que essa máxima tem sido deixada de lado. Quando se olha para as relações federativas do governo central com estados e municípios, o mais comum tem sido priorizar aliados e dificultar o trabalho de governadores e prefeitos de projetos políticos diferentes. Pouco importa a pauta que está em questão. O enfrentamento da Covid-19 escancarou esse processo e abriu um grande debate não apenas acerca do funcionamento da coordenação federativa brasileira, mas também sobre o espírito republicano e até mesmo humanitário que vem orientando cada uma das decisões. Em muitas delas, vindas de governantes de diferentes partidos, os projetos de poder para 2022 falaram mais alto do que a urgência em enfrentar prioritariamente a pandemia.
Esse problema expressa-se não apenas no âmbito das relações entre a classe política na disputa pelo poder. Decisões que prejudicam minorias ao retirarem direitos e proteção social têm sido encaminhadas à revelia de um debate público mais amplo e em benefício claro de grupos que são mais próximos do núcleo de poder. O debate sobre o projeto que trata do marco temporal em relação à demarcação de terras indígenas, assim como o do projeto de lei da grilagem, mostra claramente a assimetria de poder existente na discussão dessa questão. Sobram interesses econômicos e de poder em detrimento do debate sobre os povos originários.
Por fim, cabe lembrar que o debate democrático foi e sempre será cercado pelo conflito de ideias em torno de diferentes visões sobre uma mesma questão. Quem se quer apresentar como líder democrático tem de escutar o contraditório, estar disposto a construir acordos e até mesmo a mudar de posição em função do debate. O que une as diferenças são o respeito pela liberdade e a preservação da vida e dos direitos de todos, incluindo as minorias. Só devemos ser intolerantes com quem não tolera os valores democráticos.
O artigo original foi publicado na revista RAE, acesse o link.
Autores
Marco Antonio Carvalho Teixeira