Dia Internacional contra a LGBTfobia: mecanismos brasileiros são ineficazes e incentivam a impunidade

Apesar de terem passado quatro anos desde essa decisão, a escassez de dados dificulta a avaliação do impacto e eficácia de tal entendimento nos tribunais de primeiro e segundo grau.

Direito
17/05/2023
Chiara Mori Passoni

Hoje, no Brasil, quando uma pessoa LGBT+ sofre uma violência por conta de sua orientação sexual ou identidade de gênero e deseja buscar justiça, o direito brasileiro apresenta diferentes caminhos para a responsabilização nas esferas penal, civil e administrativa.

A vítima pode registrar uma denúncia em uma delegacia. Se ela não encontrar resistência dos agentes públicos e não tiver sua narrativa desacreditada, o fato será tipificado como crime de racismo, por conta do julgamento da ADO 26/2019, na qual o Supremo Tribunal Federal entendeu a LGBTfobia como espécie de racismo social, conduta sujeita à aplicação da Lei nº 7.716/1989.

Apesar de terem passado quatro anos desde essa decisão, a escassez de dados dificulta a avaliação do impacto e eficácia de tal entendimento nos tribunais de primeiro e segundo grau, bem como em delegacias, conforme apontou pesquisa da Clínica de Direitos Humanos e Diversidade da FGV (2020). Não há garantias de que o tipo penal registrado no boletim de ocorrência será coerente com a violência sofrida, pois os sistemas das próprias delegacias só começaram a adotar recentemente a possibilidade de enquadrar a LGBTfobia como racismo, o que pode dificultar o andamento da denúncia.

Antes da criminalização da LGBTfobia, porém, diante da omissão legislativa nacional, estados e municípios tentaram contornar a lacuna ao criar legislações administrativas de sanção por discriminação por orientação sexual e identidade de gênero. Em pelo menos 36 cidades e estados do Brasil a vítima pode instaurar processo administrativo que responsabiliza tanto pessoas físicas quanto jurídicas por meio de multa e suspensão de funcionamento do estabelecimento. Essas leis, por um momento, apontaram um possível novo rumo para a luta institucional LGBT+ contra a impunidade, mas mostraram-se ineficientes na prática.

No estado de São Paulo, por exemplo, que tem uma das leis mais antigas sobre o assunto (Lei n˚ 10.948/2001), a população LGBT+ não a conhece. Em sua maioria, os processos são promovidos por ativistas que já têm familiaridade com o tema e conhecimento dos mecanismos de responsabilização. Além disso, o valor das multas é baixo e não é destinado a políticas públicas voltadas para esta população. Por último, como os processos são sigilosos e não há produção de dados acerca deles, há uma dificuldade imensa de estudar esta política.

Outro caminho possível para a responsabilização é pleitear indenização por danos morais na justiça comum. Contudo, possivelmente haverá dificuldade na comprovação do dano, tendo em vista que o ônus da prova muitas vezes recairá sobre a vítima e, neste processo probatório, há o perigo de revitimização. Não suficiente, não existe um valor base de danos morais sendo este, em sua maioria, irrisório comparado às violações sofridas. Todos estes elementos, somados à demora processual diminuem a segurança jurídica e desincentivam a busca pela responsabilização civil.

A partir deste cenário, o Estado brasileiro se omitiu e se omite em endereçar questões relacionadas à população LGBT+ (Encarnación, 2016), especialmente quanto à possibilidade de punir agressores por violações de direitos (Benevides e Nogueira, 2020; Peres, Soares e Dias, 2018), o que contribui para a sensação de desamparo e descrença no sistema por parte da comunidade. Dessa forma, a existência de vários caminhos de responsabilização está diretamente ligada à omissão, uma vez que foi necessário desenvolver outras estratégias para tentar assegurar a garantia dos direitos.

Fato é que a omissão do Legislativo federal não fez a pauta deixar de existir, mas deslocou a tomada de decisão para outras esferas da Federação, bem como para o Poder Judiciário e Executivo. Por mais que a competência e responsabilidade de criminalizar atos de violência e discriminação seja exclusiva do Legislativo federal (artigo 22, I, CF), quando o Judiciário incluiu a LGBTfobia no crime de racismo, buscou contornar a omissão do Congresso. A mesma circunstância ocorreu com a criação, por estados e municípios, de normas de sanções administrativas.

Mesmo com a normatização, a cada 32 horas uma pessoa LGBTI+ é assassinada, de acordo com o Observatório de Mortes e Violências LGBTI+ no Brasil (2023). Assim, no dia 17 de maio, em que se celebra o Dia Internacional contra a LGBTfobia, é urgente que o Brasil demonstre avanços reais na garantia da eficácia dos mecanismos de responsabilização e reparação para vítimas de discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero e, para tanto é necessário angariar dados para possibilitar uma avaliação real das políticas, bem como fazer valer as normas já existentes. Essas violações não podem continuar impunes por mais um ano.

*As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional da FGV.

Autor(es)

  • Chiara Mori Passoni

    Pesquisadora do Centro de Direitos Humanos e Empresas (CeDHE) e monitora da Clínica de Direitos Humanos e Diversidade da FGV Direito SP. Graduada em Direito pela Escola de Direito de São Paulo (FGV Direito SP). Possui experiência em pesquisa empírica nas áreas de Direitos Humanos, Direitos LGBT+ e Direito e Desastres Socioambientais.

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