A família homoafetiva e os desafios para seu efetivo reconhecimento

A proteção legal da família homoafetiva não é o único passo que deve ser dado para que estes núcleos familiares sejam efetivamente resguardados e possam finalmente ter o mesmo e merecido significado jurídico de famílias heteronormativas.

Direito
28/06/2023
Vivianne Ferreira

No dia 28 de junho comemoramos o dia do Orgulho LGBTQIA+. No campo do Direito, especialmente do Direito de Família, houve avanços nos últimos anos em relação ao reconhecimento da família homoafetiva: em 2011, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a união estável homoafetiva. A partir desta decisão, o Conselho Nacional de Justiça regulamentou, em 2013, a habilitação, a celebração de casamento civil e a conversão de união estável em casamento entre pessoas do mesmo gênero, o que resultou, na prática, no reconhecimento do casamento homoafetivo no Brasil. Foram conquistas importantes que, no entanto, não receberam o merecido amparo legal, já que o Congresso Nacional, até hoje, não promulgou lei ou emenda constitucional a respeito destes dois temas. Assim, a família homoafetiva é reconhecida tão somente a partir de uma decisão judicial, o que justifica o receio de que possa haver, a depender do humor político do momento, qualquer retrocesso. 

A proteção legal da família homoafetiva não é o único passo que deve ser dado para que estes núcleos familiares sejam efetivamente resguardados e possam finalmente ter o mesmo e merecido significado jurídico de famílias heteronormativas. Quando o Código Civil trata da família, deixa claro, expressa ou tacitamente, que o legislador tem em mente apenas o modelo de família composto por pai, mãe e filhos. Qualquer outra modalidade de núcleo familiar é deixada de lado, ignorada pelo legislador. A seguir, darei alguns exemplos acerca da invisibilidade da família homotransafetiva na disciplina das relações familiares na legislação familiarista. 

O Código Civil traz, ao tratar das relações de parentesco, um sistema de presunções de parentalidade a partir da existência de um casamento. Ou seja, a lei diz em quais casos presume-se que uma criança tenha sido concebida na constância do casamento, sendo filha biológica do casal. No entanto, as hipóteses de presunção de parentalidade do art. 1.597, incisos I e II, que giram em torno da concepção, aplicam-se apenas aos casais heteronormativos: a criança é presumidamente filha do marido se nascer até 180 dias após o casamento ou até 300 dias da sua dissolução. A família imaginada pelo legislador, aqui, é composta por marido e mulher e a criança por eles concebida. Não há espaço, a meu ver, para a aplicação dessas regras de presunção a casais homoafetivos. 

Também sobre a parentalidade, o CNJ disciplinou em 2017 o modelo único de certidão de nascimento (Provimento 63/2017). De acordo com este Provimento, no caso de famílias homoafetivas, não constará da certidão de nascimento a referência a ascendentes maternos ou paternos. Ainda, foi regulamentado o reconhecimento administrativo (sem necessidade de autorização judicial) de parentalidade socioafetiva, porém apenas em relação a maiores de 12 anos. Um casal de mulheres, que não estaria protegido pelas presunções do art. 1.597, incisos I e II, no qual uma delas gerou uma criança por inseminação caseira, seria obrigado a aguardar até que a criança atinja essa idade para que a mãe que não deu à luz fosse beneficiada por este procedimento administrativo, para então ter sua maternidade reconhecida.  

Já no que concerne à identidade civil, pessoas trans devem aguardar até a maioridade para poderem alterar seu prenome e gênero na certidão de nascimento, e a alteração do nome em certidão de nascimento de filhos maiores depende da autorização destes (conforme Provimento 73/2018). Isto poderia levar a situações onde, por exemplo, a mãe - mulher trans - ainda teria que conviver com seu antigo nome na certidão de nascimento do filho que não aceita sua identidade de gênero, em nítida violação a seus direitos de personalidade e à dignidade humana. 

A adoção, por sua vez, regida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, não proíbe, mas também não permite expressamente a adoção por casais homoafetivos, o que levou, por muito tempo, a uma espécie de política do “não pergunte, não fale”: a criança era adotada apenas por uma pessoa do casal. Ainda, a ausência de uma previsão expressa da possibilidade de adoção por casais homoafetivos dá margem à possibilidade de negativa judicial da adoção, deixando a cargo do julgador, sem amparo constitucional e legal e em nítida atuação discriminatória, reconhecer ou não, ali, uma família apta a receber uma criança em adoção. 

Finalmente, não há nenhuma margem, no Direito das Sucessões, para responsabilizar os filhos ou pais - herdeiros de primeira e segunda classe, respectivamente - que praticam abandono afetivo contra aquele ascendente ou descendente cuja orientação sexual e/ou identidade de gênero não são aceitas pela família. A homotransfobia, ao final, pode ser premiada com o recebimento da herança por parte do homotransfóbico. 

Estes são apenas alguns exemplos de muitos outros que poderíamos levantar. Eles indicam que, apesar da possibilidade, aberta pela Constituição, de novos modelos familiares, nossas leis ainda giram em torno da chamada família “tradicional”, formada por um casal heterocisnormativo e seus descendentes - e tradicional em aspas, visto sermos um país de mães solo e pais que abandonam seus filhos. É mais do que hora de reconhecer a existência de outros modelos familiares, tão legítimos quanto à família heterocisnormativa, ao invés de relegá-los à invisibilização por parte do Estado, que é quem deveria, em primeiro lugar, protegê-los e garantir sua existência.

*As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional da FGV.

Autor(es)

  • Vivianne Ferreira

    Professora da Graduação da FGV Direito SP e orientadora (2015 e 2017) nos cursos de pós-graduação do FGVLAW. Autora do livro "Die soziale Funktion des Vertrages im brasilianischen Código Civil - A Função Social do Contrato no Código Civil Brasileiro" (editora Nomos, 2017) e de artigos publicados no Brasil, Alemanha, Itália e Espanha. Pesquisadora nas áreas de Direito Civil, com destaque para Direito dos Contratos, Direito das Sucessões, Parte Geral e Direitos Reais, Direito Comparado, História do Direito e Metodologia Jurídica.

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