Geopolítica industrial

Geopolítica volta ao volante, vendo-se a construção de uma nova ideologia em que as políticas públicas são dirigidas a promover não a eficiência, mas a segurança nacional.

Direito
11/10/2024
Armando Castelar Pinheiro

Como posto por George Stigler, “a eficiência constitui-se no problema fundamental dos economistas”.vSeja sob a forma de eficiência técnica, alocativa, dinâmica etc., ela é o parâmetro que os economistas usam para avaliar políticas e arranjos diversos. Nesse sentido, os últimos quatro decênios deram motivo para celebração. Houve um significativo recuo na intervenção do Estado na economia, com amplos processos de privatização, desregulação e redução das barreiras comerciais mundo afora. Baixa inflação e contas fiscais equilibradas ganharam prioridade. O mercado passou a influir mais na alocação de recursos. E, de fato, isso ajudou a aumentar a eficiência e promover o crescimento econômico.

Entre 1983 e 2023, o PIB per capita mundial cresceu 1,68% ao ano (a.a.), em média, o dobro do observado entre 1973 e 1983 (ver data.worldbank.org/). As exportações mundiais de bens e serviços se expandiram ainda mais, aumentando 4,7% a.a., em média. O crescimento foi maior entre os países de renda baixa e média (3,35% a.a.), com destaque para a Ásia emergente (6,71% a.a.), mas também alto nos de renda alta (1,80% a.a.). As exportações dos países em desenvolvimento saltaram de 25,6% para 44,1% do total mundial.

Essa mudança teve um claro componente ideológico, que se destacou nos governos de Margaret Thatcher e Ronald Reagan, mas também foi catapultada pela mudança na geopolítica global que adveio da dissolução da URSS e do fim da Guerra Fria. Sem isso dificilmente se teriam observado reformas de tamanha envergadura. A privatização da infraestrutura, por exemplo, só ganhou força quando o controle estatal das instalações deixou de ser tema de segurança nacional.

Devem crescer o nacionalismo econômico e a pressão para a formação de blocos econômicos pouco conectados entre si Mas esse processo está sendo revertido, com a geopolítica voltando ao volante, vendo-se a construção de uma nova ideologia em que as políticas públicas são voltadas para promover não a eficiência, mas sim a segurança nacional.

Na China, tem havido recorrente frustração com a falta de estímulos fiscais e monetários mais fortes para reverter a crise imobiliária e acelerar o crescimento, diferente do que se viu após a Grande Crise Financeira de 2007-08. Mês após mês, os indicadores de atividade surpreendem para baixo, como se viu nos dados de agosto passado.

O governo, porém, parece contente com a estratégia adotada, focada na industrialização via substituição de importações. O objetivo central é reduzir a dependência do país de bens e tecnologias importadas. Com isso, o crédito e o investimento estão fluindo para a indústria local. O desafio é que falta demanda doméstica por esses bens e o país depende das exportações para vendê-los.

Os Estados Unidos embarcaram em um processo semelhante, também focado na (re)industrialização via substituição de importações. O diagnóstico é que, como na China, a dependência de produtos fabricados no exterior compromete a segurança nacional, seja porque se depende da produção externa, seja porque esses produtos podem ser usados com fins militares. O banimento do Tik Tok e a proibição de a Nippon Steel comprar a US Steel são exemplos dessa visão.

Tanto Donald Trump como Kamala Harris já anunciaram que pretendem aprofundar esse processo. Trump fala de elevar as tarifas de importação em geral. Harris de fazer um programa mais focado em setores estratégicos. Quem se eleger deve aumentar as barreiras a investidores estrangeiros, os subsídios a produtores nacionais e as restrições ao acesso a tecnologias sensíveis.

Mais recentemente a União Europeia também começou a adotar políticas na mesma direção, com barreiras às importações de produtos chineses. O dilema exposto pelos europeus, bem exemplificado no combate à mudança no clima, vai mais na direção de se é melhor importar, por exemplo, painéis solares chineses baratos, mas abrindo mão de ter produção local, ou reduzir a dependência das importações, mas ao custo de onerar esses investimentos.

Mas essa posição começa a mudar com o relatório produzido por Mario Draghi para a Comissão Europeia e divulgado semanas atrás (ver shorturl.at/tsYHg). O relatório aponta três áreas prioritárias de ação: (i) ocupar um lugar de destaque no desenvolvimento de novas tecnologias; (ii) promover a descarbonização e a competitividade dos produtores europeus; e (iii) “aumentar a segurança e reduzir a dependência” dos produtos importados, com Draghi observando que “as ameaças à segurança física estão a aumentar e temos de nos preparar”. Para isso defende, entre outras coisas, uma política industrial mais ativa, uma redução da fragmentação econômica, em especial na indústria de defesa, e o que chamou de uma política externa econômica, voltada para garantir o suprimento de bens primários essenciais.

Esse processo está apenas começando, mas seu ritmo deve seguir se acelerando. Para a frente devem crescer o nacionalismo econômico, a pressão para a formação de blocos econômicos pouco conectados entre si e o desenvolvimento de uma nova ideologia voltada para justificar essas opções de um prisma menos militarista, como a ideia de que a globalização teria levado à concentração de renda - o que os dados acima mostram que não ocorreu, pelo menos globalmente - e por isso deveria ser revertida. A eficiência voltará para o banco de trás.

*As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional da FGV.

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Autor(es)

  • Armando Castelar Pinheiro

    Coordenador de Economia Aplicada do Instituto Brasileiro de Economia (FGV IBRE) e professor do Instituto de Economia da UFRJ. Atuou como analista da Gávea Investimentos, pesquisador do IPEA e chefe do Departamento Econômico do BNDES, tendo lecionado nos programas de pós-graduação da PUC-Rio e da FGV EPGE. Castelar é Ph.D. em Economia pela Universidade da Califórnia, Berkeley, formado em Engenharia Eletrônica pelo ITA e mestre em Estatística pelo IMPA e em Administração de Empresas pela COPPEAD. É membro do Conselho Superior de Economia da FIESP e articulista dos jornais Valor Econômico e Correio Braziliense.

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