O impacto da alta do IGP-M na correção dos contratos. Há alternativas?

Além da questão social, há uma preocupação com o potencial aumento de disputas que já inflam o Poder Judiciário desde o início do estado de calamidade pública em que nos encontramos

Direito
27/10/2020
Luciano de Souza Godoy

Notícia recente publicada pelo Portal FGV relatou que o aumento no Índice Geral de Preços – Mercado (IGP-M) em setembro de 2020 foi de 4,34%, resultando em acúmulo de 14,40% no ano e 17,95% em 12 meses.

Mais que um hábito, um costume já arraigado nas relações obrigacionais, um acessório implícito, a correção monetária ainda está presente no Brasil de forma a poder ser considerado parte da obrigação principal.

A correção monetária anual foi prevista no art. 28 da Lei 9.069/95, responsável pela consolidação do Plano Real. Apesar da estabilização da moeda ter sido pretendida na própria lei, o artigo dispõe que “nos contratos celebrados ou convertidos em real com cláusula de correção monetária (...), a periodicidade de aplicação dessas cláusulas será anual”.

E assim ficou. Diversos tipos de contrato preveem uma correção monetária anual e para tanto se utilizam do IGP-M, que corrige, com frequência, prestações de trato sucessivo muito comuns no cotidiano da população. São contratos de locação residencial ou comercial, planos de saúde, tarifas públicas (pedágios, água, energia) pensões alimentícias, mensalidades escolares etc.

Em 2020, portanto, os pactos que elegeram o IGP-M como índice de correção terão um reajuste acumulado de aproximadamente 18% em outubro, novembro e dezembro. Considerando a situação do país, a crise de saúde pública imposta pela COVID-19 e a afetação da economia, com quebra de cadeias produtivas, desestabilização do consumo e de renda, podemos prever uma grave e consequente proliferação de quebras contratuais decorrentes de tudo isso e mais do imposto pelo reajuste do IGP-M.

Os artigos 317 e 478 do Código Civil admitem a possibilidade de revisão do contrato pelo Estado-juiz em caso de superveniência de fatos imprevisíveis que afetem de maneira significativa o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos.

Sem poder citar neste curto espaço, artigos e precedentes autorizam que os eventos capazes de permitir a intervenção do juiz nos contratos dependem de alguns requisitos, quais sejam: (i) superveniência; (ii) imprevisibilidade; (iii) não decorrência dos riscos próprios da contratação; e (iv) capacidade de gerar desequilíbrio significativo no sinalagma contratual, de forma que, tivessem as partes sido capazes de prevê-lo, não teriam contratado, ou o teriam feito de maneira diversa.

E o valor pode ser revisto sem o rompimento da relação. Há uma inflação pouco comentada e podem pedir a revisão do contrato para a substituição do IGP-M por um outro.

A modificação do conteúdo do contrato celebrado entre particulares pode ocorrer com fundamento na teoria da imprevisão e na aplicação do princípio rebus sic stantibus, noções limitadoras da força obrigatória daquilo que foi particularmente pactuado.

As quebras contratuais e dificuldades de pagamento que já vinham ocorrendo como consequência da pandemia e da crise, se tornaram, agora, com o aumento exacerbado do índice IGP-M, ainda mais prováveis. É necessário um olhar atento e socialmente preocupado com as pessoas que contrataram obrigações de diversas naturezas e que jamais imaginariam que, no meio da crise, teriam reajustes de correção monetária de 18% em suas prestações.                                             

Além da questão social, há uma preocupação com o potencial aumento de disputas que já inflam o Poder Judiciário desde o início do estado de calamidade pública em que nos encontramos.

Contudo, mais interessante do que qualquer método heterocompositivo de intervenção na relação contratual, será, mais do que nunca, necessária a capacidade das partes de negociarem as prestações por métodos consensuais, sendo cada caso analisado com a suas peculiaridades, cláusulas, capacidade de pagamento do devedor e necessidade de recebimento pelo credor.

Apesar de previsto um aumento no número de ações judiciais e arbitragens, o bom-senso indica que o melhor caminho é a negociação ou a mediação.

*As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional da FGV.

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Autor(es)

  • Luciano de Souza Godoy

    Professor da Escola de Direito de São Paulo (FGV Direito SP). Doutor e Mestre em Direito pela USP, Visiting Scholar pela Columbia Law School. Foi Procurador do Estado de São Paulo (1993/1998), Juiz Federal junto ao Tribunal Regional Federal da 3ª Região (1998/2007) e Executivo Jurídico do Departamento Jurídico do Santander (2007/2008) e da CSN (2008-2011). É membro do Conselho Consultivo do Centro de Arbitragem da AMCHAM/Brasil, do Conselho Jurídico da FIESP e da lista de árbitros da Sociedade Rural Brasileira - SRB, da Câmara de Conciliação, Mediação e Arbitragem CIESP/FIESP (CMA-CIESP/FIESP) e do Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canadá (CAM-CCBC).

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