Inteligência artificial e mercado de trabalho: aspectos disruptivos
O debate recente sobre inteligência artificial tem se concentrado nos seus aspectos disruptivos. Mas existe muito que pode ser feito para que as novas tecnologias tenham efeitos positivos no mercado de trabalho. É preciso agir.
Uma questão central nos dias de hoje diz respeito ao impacto das novas tecnologias sobre o mercado de trabalho. Diante dos avanços recentes da inteligência artificial, o tema tornou-se ainda mais urgente.
Nas últimas décadas, tarefas rotineiras foram sendo automatizadas, resultando em queda do emprego e salário dos trabalhadores com qualificação intermediária. Por outro lado, trabalhadores de qualificação elevada que exercem atividades não-rotineiras associadas ao pensamento abstrato e criatividade tiveram aumento de emprego e salário.
A principal diferença em relação às tecnologias anteriores é que as novas modalidades de inteligência artificial podem inferir relações tácitas que não são passíveis de codificação e gerar conteúdo, como texto e imagens. Por isso, podem vir a substituir trabalhadores que exercem atividades não-rotineiras.
Embora as novas tecnologias possam aumentar a produtividade do trabalho, o debate tem se concentrado nos seus aspectos disruptivos. Em particular, a discussão está centrada na ideia de que a inteligência artificial produzirá ganhadores e perdedores, e de que os últimos deveriam receber compensações por parte do governo, sob a forma de um aumento das transferências de renda ou pela criação de uma renda básica universal.
Como observou Sarah O´Connor, colunista do Financial Times, essa narrativa tem dois problemas. Primeiro, desconsidera o fato de que o impacto de novas tecnologias resulta da interação entre vários fatores, como a natureza da tecnologia, características institucionais do mercado de trabalho e as qualificações dos trabalhadores. Na medida em que cada um desses elementos pode ser modificado, o resultado está longe de ser inevitável.
Além disso, a ideia de que os perdedores devem ser compensados pelo governo desconsidera o papel fundamental que empresas e indivíduos podem exercer na busca de formas de canalizar as oportunidades criadas pelas novas tecnologias para a geração de bons empregos.
Isso não significa que não existirão perdedores, ou que o governo não deva oferecer compensações. O ponto principal é que existem diversas possibilidades a serem exploradas para reduzir possíveis impactos negativos das novas tecnologias, e que elas necessariamente envolvem a colaboração de toda a sociedade.
Como já comentei neste espaço, mesmo antes da pandemia vários centros de pesquisa, instituições multilaterais e empresas de consultoria já dedicavam muita atenção a este tema. Por exemplo, em 2018 foi criado o MIT Task Force on the Work of the Future, envolvendo pesquisadores de doze departamentos do Massachusetts Institute of Tecnology.
Ano passado foi lançado um livro que resume as principais conclusões da pesquisa desenvolvida pela MIT Task Force (“The Work of the Future: Building Better Jobs in an Age of Intelligent Machines”), incluindo várias recomendações de políticas públicas e mudanças institucionais com o objetivo de fazer com que os ganhos de produtividade decorrentes das novas tecnologias venham a ser compartilhados por toda a sociedade por meio da criação de bons empregos.
Embora sejam oferecidas sugestões no sentido de estender a rede de proteção social, grande parte das recomendações diz respeito às chamadas políticas ativas de mercado de trabalho, como qualificação profissional e intermediação de mão de obra.
No que diz respeito à intermediação do emprego, a ideia central é utilizar as novas tecnologias e parcerias com o setor privado de modo a reduzir a assimetria de informação e aprimorar o mecanismo de pareamento (matching) entre empresas e trabalhadores. Em relação à qualificação, as propostas procuram estimular uma colaboração estreita entre as entidades responsáveis pelo treinamento e as empresas.
Em artigo com Fernando de Holanda Barbosa Filho (“Mercado de Trabalho no Brasil: Evolução, Efeitos da Pandemia, Perspectivas e Propostas”), apresentamos várias propostas de qualificação profissional e intermediação de mão de obra para o Brasil que vão na mesma direção.
A principal premissa das propostas de qualificação é que a oferta de cursos deve estar conectada com a demanda do mercado. Uma forma é fazer um mapeamento de vagas através do contato direto com as empresas, ofertando os cursos somente quando seja observada a necessidade de uma capacitação profissional específica em determinada região. Esse foi o modelo do Pronatec-MDIC, uma vertente bem-sucedida do fracassado Pronatec, mas que contou com menos de 1% dos recursos totais do programa.
Outra proposta consiste na disponibilização de um voucher para as empresas que permita a capacitação de um futuro funcionário ou a requalificação de um empregado. Isso evitaria que fosse oferecida qualificação profissional em competências nas quais as empresas não tenham interesse.
Uma terceira possibilidade é o contrato de impacto social, no qual a empresa contratada para ofertar o serviço somente seria remunerada se cumprisse uma meta de empregabilidade do grupo que realiza o curso de qualificação. Uma proposição legislativa que estabelece as condições necessárias para a implementação de contratos de impacto social é o PLS 338/2018, de autoria do Senador Tasso Jereissati.
Em relação à intermediação de emprego, as novas ferramentas de inteligência artificial podem ser incorporadas de forma mais intensa ao Sistema Nacional de Emprego (SiNE), de modo a melhorar a qualidade das plataformas digitais.
Um segundo eixo consiste na integração do SiNE com empresas privadas de intermediação, seja através da disponibilização do acesso aos dados cadastrais desidentificados de trabalhadores inscritos no SiNE a empresas privadas (SiNE aberto) ou pela incorporação de agentes privados à rede de atendimento provida por estados e municípios (SiNE misto).
Em resumo, muito pode ser feito para que os avanços da inteligência artificial tenham efeitos positivos no mercado de trabalho. Mas é preciso agir.
Este artigo foi publicado em 29 de maio no Blog Impacto.
*As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional da FGV.
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