Lições da China para o Brasil

O tempo da industrialização acelerada e do modelo baseado em investimentos físicos, em construção civil e infraestrutura passou.

Economia
21/09/2023
Pedro Cavalcanti Ferreira
Renato Fragelli Cardoso

O crescimento chinês, desde o início dos anos 1980, revelou-se uma experiência única na história moderna. Em poucas décadas, o produto per capita aumentou 25 vezes e a pobreza, que atingia 80% da população em 1982, foi basicamente zerada. Entretanto, enquanto a grande maioria das economias mundiais já recuperou o ritmo de crescimento interrompido durante a pandemia, a expansão na China continua muito lenta, senão estagnada, e as previsões para os próximos anos são bastante pessimistas. Isso aponta para fatores estruturais e enseja algumas lições importantes para o Brasil.

É difícil apontar um só fator para o crescimento chinês. Mas tudo começa com as reformas liberalizantes de Deng Xiaoping, iniciadas no final dos anos 1970.

O país estava recém-saído de um de seus períodos mais obscurantistas e fechados - a revoluçãocultural - em que qualquer dissenção era punida e qualquer ideia original perseguida. As reformas econômicas foram na direção oposta, abrindo a economia ao empreendedorismo, incentivando novos negócios e, se não aprovou a propriedade privada plena, garantiu contratos e a estabilidade de regras. Isso gerou um boom de investimentos privados, o surgimento de novos negócios que cresceram aceleradamente e atração de capitais estrangeiros. Saindo de um ambiente onde a criatividade era punida para um onde era incentivada, a resposta foi rápida e fortíssima.

O crescimento dos setores industriais e de serviços atraiu milhões de trabalhadores do campo para acidade, diminuindo em muito o peso da agricultura. Esse é um fenômeno que se observa durante o processo de desenvolvimento de todas as economias. A transferência de trabalhadores de setores pouco produtivos no campo, para os mais produtivos da indústria e serviços provoca, via efeito composição, um aumento do crescimento econômico. No Brasil estima-se que esse efeito tenha sido responsável por 40% do crescimento entre 1950 e 1980. Na China não foi diferente.

O crescimento acelerado das cidades e dos negócios levou a um boom da construção civil e de infraestrutura, estimulada pelo governo (central e locais). Milhares de mega projetos imobiliários foram desenvolvidos pelo país afora, e junto a eles construíram-se estradas, metrôs, trens, aeroportos e outros projetos em um ritmo jamais visto. O modelo gerou um incentivo perverso, pois os projetos imobiliários respondiam pelo grosso das receitas dos governos regionais, o que os levou a estimular novas construções, mesmo sem boa previsão de demanda. Ao mesmo tempo, bancos estatais com fraca governança estendiam empréstimos a custos baixos ao setor.

Para voltar a crescer a China precisa de mais reformas, mais abertura política, e não insistir em modelosdo passado. Após quatro décadas, muitos desses fatores se esgotaram. A migração para as cidades não se dá mais aos milhões de pessoas, de modo que seu efeito sobre o crescimento não está mais presente. O mesmo se deu no Brasil, durante a década de 1980, embora os nostálgicos do milagre econômico não levem isso em conta e continuem sonhando com taxas de 4%, que nunca mais se repetirão. Com a diminuição da população rural, o crescimento por esse canal naturalmente se reduz.

Ocorre que o ritmo da construção civil chinesa não diminuiu, e os projetos gigantescos continuaram apipocar pelo país afora, estimulados pelos governos regionais, ávidos por receitas. A bolha estourou, deixando um gigantesco estoque de apartamentos novos vazios. 

A receita tributária dos governos regionais, no último ano, caiu 22%. E depois de se construir centenas de aeroportos país afora, cobrir a China inteira com rodovias e ferrovias, e instalar sistemas de metrô e transporte em centenas decidades, o retorno desses projetos caiu muito e o espaço para novas expansões diminuiu, quando não desapareceu.

Para recuperar o fôlego, a China precisaria mudar um modelo que não funciona mais, centrando menos no investimento e indústria e mais no consumo, inovação e serviços. Não nos parece provável. Assim como no Brasil, onde os nostálgicos do passado insistem em uma reindustrialização que não ocorrerá, a China parece querer insistir em um modelo que já se esgotou. Além disto, a crescente repressão política interna, bem como o conflito geopolítico com os Estados Unidos, prejudicam o ambiente econômico e a inovação - talvez o único canal restante para o crescimento econômico -, além de afugentarem capital estrangeiro.

A desaceleração inevitável do crescimento chinês, nosso maior parceiro comercial, trará consequênciaspara o Brasil. Mas as lições aqui são outras. Para voltar a crescer a China precisa de mais reformas, mais liberalizações econômicas e mais abertura política, e não insistir em modelos do passado. O setorestatal e a ingerência do governo na economia precisam diminuir. O tempo da industrialização acelerada e do modelo baseado em investimentos físicos, em construção civil e infraestrutura passou. A China está se transformando em uma economia de serviços onde as políticas deveriam ser outras. Tudo isso vale para o Brasil e para aqueles que aqui sonham com um passado industrial que nunca foi tão bom assim: afinal, parte dele deu-se sob uma ditadura e a desigualdade só cresceu no período. 

*As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional da FGV.

Do mesmo autor

Autor(es)

  • Pedro Cavalcanti Ferreira

    Possui graduação e mestrado em Economia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e PhD. pela University of Pennsylvania (1993). Desde 1993 é professor da EPGE Escola Braisileira de Economia e Finanças (FGV EPGE). Sua principal área de pesquisa é Crescimento e Desenvolvimento Econômico, atuando principalmente nos seguintes temas: diferenças de crescimento e renda entre países; efeitos de política públicas - barreiras comerciais, infra-estrutura, taxação, etc. - sobre crescimento, produtividade total dos fatores e produto per capita; e longevidade e educação. Recentemente tem trabalhado com modelos dinâmicos macroeconômicos com heterogeneidade entre agentes para estudar aposentadoria, questões de saúde e desigualdade de renda e riqueza. Também possui pesquisas em economia regional (migração e dispersão de renda entre estados e regiões brasileiras) e política industrial. 

  • Renato Fragelli Cardoso

    Doutor em Economia pela EPGE Escola Brasileira de Economia e Finanças (FGV EPGE) em 1989, foi Visiting Scholar na University of Pennsylvania em 1999, e docente na EPGE a partir de 1999. Atualmente ministra cursos de Microeconomia, Macroeconomia, Economia Monetária e Desenvolvimento Econômico.

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