O médico e o monstro do sistema tributário
O cidadão e o Estado atuam como Jekyll e Hyde, respectivamente; o Estado é cria do cidadão e, por vezes, confundem-se.
No clássico romance de Robert Louis Stevenson, chamado “O médico e o monstro”, um respeita do médico chamado Henry Jekyll e outro personagem chamado Edward Hyde confundem-se na mesma pessoa com dupla personalidade.
Jekyll utiliza uma poção transformadora que faz surgir Hyde, uma pessoa desprezível e sem escrúpulos, cujos ímpetos são crescentes e incontroláveis. Hyde vai dominando Jekyll, tornando-se cada vez mais poderoso e violento, até que assassina um importante membro da sociedade londrina. Jekyll teme não ter mais controle sobre Hyde e dele resolve se livrar praticando o suicídio.
A trama explora a dualidade humana, a natureza do mal e a capacidade que todos têm de serem tanto virtuosos quanto monstruosos.
O cidadão e o Estado atuam como Jekyll e Hyde, respectivamente. O Estado é cria do cidadão e, porvezes, confundem-se. A bem da verdade, Jekyll é o cidadão e Hyde é o Estado, que é por ele criado e controlado. O Estado Hyde, assim como na obra, cresce e torna-se cada vez mais poderoso e dominante, subjugando o cidadão Jekyll que, por sua vez, não consegue mais dominá-lo.
A poção transformadora que Jekyll entrega a Hyde na obra equivalem às leis que o cidadão entrega ao Estado, fazendo-o poderoso e, por vezes, desprezível e sem escrúpulos.
Hyde quer controlar totalmente Jekyll, assim como o Estado quer controlar totalmente o cidadão, impondo-lhe exações absolutamente crescentes para fazer frente aos seus insaciáveis desejos de gastar e dominar. Não percebe que o fim de um é o fim também do outro.
O Estado Hyde já é um ser todo poderoso, já denunciado por Valdés Costa ao apontar que o Estado é o criador da obrigação fiscal, dela credor e juiz dos conflitos que sobre ela possam pairar. Vou além, inserindo o poder de interpretar e de gastar como bem entender.
O Estado é o criador do contencioso, responsável por 60% das demandas em andamento no país. É o criador de leis mal feitas. É especialista em interpretar erroneamente, editando atos que extrapolam os limites regulamentares da lei. É gastador sem limites. Atua sem observância da legalidade e da moralidade.
É este o cenário que vivemos e que tem dominado as páginas de jornais nos últimos tempos.
Apenas para citar um exemplo, temos a tentativa do Poder Executivo de fazer voltar o voto de qualidade no Carf. Até aqui, tudo certo. É legítimo papel que Jekyll concedeu a Hyde. Mas Hyde quer dominar Jekyll, adotando manobras para retirar os processos relevantes das pautas de julgamento do órgão. Isso não é permitido, especialmente sob a roupagem de atos infralegais que pretendem dar-lhe aparência diversa.
Há flagrante recusa de agentes públicos de submeter ao Carf julgamentos de casos importantes sobreas regras vigentes, especialmente a regra que favorece o contribuinte em caso de empate. Isso não lhes é lícito, repito. É manobra vedada ao agente público, que deve aplicar a lei vigente neste momento, seja qual for o seu resultado.
As manobras adiam pautas na esperança de que o projeto de lei faz voltar o voto de qualidade no Carf seja aprovado, para que sob suas regras sejam os casos em andamento sejam submetidos a julgamento no órgão. Quem faz planejamento tributário e estratégico é o contribuinte. É um direito individual buscar, dentro do arcabouço legal, alternativas que lhe sejam menos onerosas.
Afinal de contas, o cidadão individual é Jekyll, criador do Estado Hyde. O Estado Hyde não tem autoridade para burlar a norma, protelando providências com mecanismos que lhe são vedados pelo sistema normativo vigente, em especial aqueles iluminados no artigo 37 da Constituição Federal,especialmente a moralidade, a impessoalidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.
Nem tudo que Jekyll pode, Hyde também pode. É Jekyll que deve dominar Hyde e não o contrário.
Há outros inúmeros cenários em que a comparação poderia ser feita. A imposição de medidas provisórias em excesso, aumento de carga tributária, autorização para aumento de gastos fundamentais sem debater a redução de gastos desnecessários, dentre outros, são elementos que indicam que Hydeestá poderoso além da conta e pode destruir Jekyll.
Então diríamos que a solução não pode ser a mesma da obra de Stevenson, na qual o cidadão Jekyllacabaria com a própria vida para conter o Estado Hyde, vez que nada mais existiria.
A solução poderia ser reclamar e protestar, direito que Jekyll reservou para si. Mas Jekyll, acovardado ejá subjugado, tem receio das represálias de Hyde, preferindo esconder-se em algum canto ou aceitar adominação em uma mistura de ato de lealdade e temor, aceitando o sofrimento de forma impotente.
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