Direito

“Muito mais do que a “saidinha”: Uma análise sobre o Projeto de Lei que restringe direitos na execução penal

Luisa Moraes Abreu Ferreira

Muito se falou sobre a recente aprovação, no Senado Federal, do Projeto de Lei 2253/2022 que iria acabar com as “saidinhas dos presos” de autoria do Senador Flávio Bolsonaro. A ideia parece sedutora: num país com altos índices de violência como o Brasil, parece pouco razoável existir uma permissão legal para que as pessoas saiam por alguns dias da prisão, durante o cumprimento de pena, sem nenhuma vigilância. Propostas como essas ganham ainda mais força quando um preso é acusado de cometer um crime durante a saída temporária, como é o caso do preso acusado de matar o Sargento da PM Roger Dias durante a saída temporária do Natal.

O Projeto de Lei, contudo, não trata apenas da saída temporária – a qual, diga-se, aplica-se somente a presos que não cometeram crimes hediondos, têm bom comportamento, cumpriram parte significativa da pena, já podem sair durante o dia do presídio para trabalho externo e recebem autorização judicial expressa para a saída. O Projeto de Lei pretende algo muito mais grave e que está sendo pouco debatido: exigir exame criminológico para a progressão de regime de todos que cumprem pena no país.

A legislação não define o que é o exame criminológico. Na prática, trata-se de três avaliações individuais da pessoa presa, realizadas em dias diferentes e por profissionais diferentes (psiquiatra, psicólogo e assistente social). Essas avaliações, feitas na forma de “entrevista”, buscam definir se a pessoa tem alguma doença psiquiátrica, se tem vínculos sociais, alguma forma de depressão etc. Há algum tempo, muitos desses profissionais evitam fazer qualquer tipo de prognóstico sobre o comportamento futuro das pessoas presas, indicando, nos próprios laudos, que nada poderia “ser previsto em relação a seu comportamento futuro, quanto à reincidência”.

Inclusive, em 2011, uma resolução do Conselho Federal de Psicologia vedou a “elaboração de prognóstico criminológico de reincidência, a aferição da periculosidade e o estabelecimento de nexo-causal a partir do binômio delito-delinquente” na perícia psicológica realizada no contexto da execução penal[1]. Como se sabe, nenhuma pessoa consegue prever o comportamento futuro de ninguém – muito menos após uma entrevista de menos de uma hora de duração.

Isso significa que o exame criminológico cumpre apenas uma função: atrasar o reconhecimento de direitos durante a execução penal. Além da demora para agendamento, exames favoráveis ao reconhecimento de algum direito não necessariamente são acompanhados por decisões judiciais de concessão de tal direito.

É justamente por isso que há mais de 20 anos, a Lei nº 10.792/03 alterou a redação do art. 112 da Lei de Execução Penal e eliminou o exame criminológico para a progressão de regime, prevendo que a transferência de regime seria determinada pelo juiz quando o “preso tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e ostentar bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento, respeitadas as normas que vedam a progressão”[2]. E o Projeto de Lei n. 2253/2022 visa a obrigatoriedade do exame em qualquer circunstância.

Se atualmente o exame configura obstáculo significativo à progressão de regime, sua extensão a todos os presos do país implicará no fim da progressividade, que é a premissa sob a qual todo o sistema de cumprimento de pena se sustenta.

Hoje, há três regimes de cumprimento de pena: fechado, semiaberto e  aberto. Considerando-se que não existe pena de morte ou prisão perpétua no Brasil – e que, portanto, todas as pessoas presas poderão, em algum momento, sair da prisão para reconstruir suas vidas – o cumprimento de pena tem o objetivo de “efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado” (art. 1º, da Lei de Execução Penal). Assim, idealmente, a pessoa presa em regime fechado que não descumpre nenhuma regra daquele regime pode, progressivamente, alcançar regimes mais brandos até o final do cumprimento de pena – quando não estará mais sob vigilância do Estado. Trata-se de forma de incentivar o respeito às regras do sistema penitenciário e o fortalecimento dos vínculos sociais e comunitários antes do final do cumprimento de pena.

A premissa é simples. A integração social não começa apenas quando a pessoa sai da prisão: a partir do ingresso no sistema prisional, tudo o que acontecer com a pessoa e com seu entorno terá um impacto profundo em sua vida e de suas famílias. É por isso que da “harmônica integração social” durante o cumprimento de pena é, além de dever normativo, fundamental para apoiar a pessoa que esteve presa e buscar evitar a reincidência.

Além disso, exigir exame criminológico em todos os casos representa enorme impacto orçamentário para os cofres públicos – já que demandará a contratação de muitos profissionais aptos à realização do exame. No mais, esses profissionais, que deveriam dar apoio psicossocial e psiquiátrico às pessoas presas, ficarão sobrecarregados com uma demanda pseudocientífica e que não contribui para a saúde mental dos presos ou para sua reinserção comunitária.

E as saídas temporárias? Apesar das críticas, as saídas temporárias são concedidas com base em uma análise rigorosa dos requisitos legais e afetam apenas uma pequena parcela da população carcerária. Mais de 95% dos beneficiados retornam à prisão: trata-se de um dos institutos jurídicos de maior eficácia prática comprovada, funciona em quase todos os casos. Casos de descumprimento geralmente envolvem atrasos. Casos de abandono, que são exceção, resultam na  revogação do benefício e retorno ao regime fechado.

Somente os presos em regime semiaberto têm o direito de saída temporária, permitida até cinco vezes por ano, com propósitos como visita familiar, participação em cursos educacionais ou profissionalizantes, ou atividades que contribuam para sua reintegração social (conforme o artigo 122 da LEP). A autorização é concedida pelo Juiz da Execução, após consulta ao Ministério Público e à Administração Penitenciária, desde que a pessoa apresente bom comportamento, tenha cumprido parte de sua pena e que a saída esteja alinhada com os objetivos de reintegração e cumprimento da sentença (segundo o artigo 1º da LEP). Além dos requisitos legais, a Administração Penitenciária geralmente exige que os familiares forneçam comprovante de residência e depósito para as despesas de transporte do presídio ao local de permanência e vice-versa.

Num país no qual é comprovada a violação massiva de direitos fundamentais no sistema prisional[3], levar à sério a segurança pública exige pensar em formas de preparar as pessoas presas para o convívio social –  em vez de adotar estratégias que prolonguem sua reclusão em prisões superlotadas, muitas vezes servindo como incubadoras para o crime organizado.

 

 


[1] Resolução 12/2011. A resolução foi declarada nula, em 2015, pela Justiça federal. Para o tribunal, “incumbe a cada profissional justificar motivadamente a impossibilidade de prognose de reincidência ou de aferição de periculosidade diante de casos concretos, não competindo ao CFP vedar a análise indiscriminadamente”.

[2] Em 2019, o “pacote anticrime” (lei 13.964/19) alterou a redação do art. 112, da LEP, trocando “bom comportamento carcerário” por “boa conduta carcerária”, sem incluir a previsão de exame criminológico.

[3] Reconhecida, inclusive, pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 347, cujo acórdão foi publicado em 19/12/2023.

Compartilhe:

Autores

  • Luisa Moraes Abreu Ferreira

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a), não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.