A normatividade das organizações internacionais
A Organização Mundial da Saúde (OMS) realizou, no fim de 2024, a 12ª reunião do Órgão de Negociação Intergovernamental, cuja principal atribuição é a criação de um Tratado Internacional sobre Pandemias. O projeto, em discussão há dois anos, foi reacendido em meio às discussões da Monkeypox, mas ainda encontra resistências quanto à criação de um sistema multilateral para acessar patógenos com potencial pandêmico e os insumos usados para combatê-los (O Globo, 2024; Médicos sem Fronteiras, 2023). Além de outros questionamentos (Lancet, 2024; EJIL: Talk!, 2024), o tratado deixa de responder duas questões centrais: qual a definição de uma pandemia e quais as implicações jurídicas de se declarar uma situação como pandemia?
CONTEXTUALIZAÇÃO
O Diretor-Geral da OMS, Dr. Tedros Adhanom Ghebreyesus, declarou que a Organização elevou o estado de contaminação da COVID-19 ao estágio de pandemia (OPAS, 2020) no dia 11 de março de 2020. Embora a Organização não tenha emitido qualquer declaração oficial por escrito, a declaração orientou e moldou a atuação de atores internacionais, como Estados e organizações internacionais.
A avaliação foi uma mudança de avaliação da própria OMS que, em 30 de janeiro, havia declarado que o surto de coronavírus constituia uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII ou PHEIC, no inglês). No Brasil, o Ministro da Saúde, Luís Henrique Mandetta, afirmou que nada mudaria com a nova definição (G1, 2020). A própria OMS indicou que a descrição como pandemia não alteraria a avaliação sobre a ameaça representada por esse vírus (OPAS, 2020).
É curioso notar que a Declaração de Emergência de Saúde Pública não obteve a mesma aderência que a Declaração de Pandemia. Apenas a partir da declaração de pandemia que medidas concretas foram ostensivamente adotadas, como o fechamento de estabelecimentos e uso de máscaras. Em estudo conduzido pelo Centro de Direito Global, da FGV Direito Rio, observou-se que, nos três poderes, atores institucionais emitiram mais atos referenciando-se à pandemia como fundamento para seus atos do que a ESPII.
Mais curioso notar que, ao passo que a ESPII deriva diretamente de uma norma vinculante da OMS, o Regulamento Sanitário Internacional, aprovado pelo Decreto Legislativo 395/2009, a declaração da Pandemia não possui um fundamento normativo, sendo derivada de práticas da Organização e de guias de atuação (OMS, 2009). Além disso, a ESPII foi emitida como um documento pela OMS (OMS, 2020), com recomendações precisas, em fevereiro de 2020, enquanto a Declaração foi um pronunciamento feito pelo Diretor da OMS durante uma conferência internacional sobre o tema.
Diante dessa situação, é importante analisar o sentido de “norma” dentro do Direito Internacional. A inexistência de padrões normativos faz questionar o positivismo jurídico tradicional, que rege a disciplina jurídica vigente. Para Kelsen, a norma “é a fonte comum de validade de todas as normas pertencentes a uma mesma ordem normativa” (Kelsen, p. 269). Para Raz, as leis devem ser prospectivas, abertas, claras e estáveis (Raz, p. 15). Já para o Direito Internacional essa lógica de regras parece, em algumas situações, subvertida.
A NORMATIVIDADE DA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE
No campo da saúde, a OMS atua como autoridade pública internacional (Von Bogdandy, Dann, Goldman, 2010, p. 5). Segundo o artigo 2º de sua Constituição, a Organização deve atuar como autoridade diretora e coordenadora do trabalho internacional no domínio da saúde. Para estabelecer uma agenda mundial de saúde, ela produz normas e padrões de saúde, além de coordenar as respostas às emergências de saúde global. Embora a palavra “normativa” não seja usada pela Constituição da OMS, ela adota e aprova instrumentos normativos com base na sua legitimidade e autoridade técnica.
Com uma definição holística, as normas da organização são distinguidas entre “instrumentos normativos fundamentais” e “funções normativas de suporte” e podem ser derivados da Assembleia Mundial da Saúde ou do Secretariado. Os instrumentos normativos derivados da Assembleia Mundial incluem convenções, regulamentos e recomendações regulamentares. Os dois primeiros são juridicamente vinculativos, conhecidos como “hard laws”, enquanto as últimas não possuem força vinculativa, já que são negociadas como acordos, e são conhecidas como “soft laws”. Já os atos derivados do secretariado são produtos técnicos e científicos, como avaliações de tendências de saúde, sendo atos não vinculativos.
Até 2024, foram elaborados três documentos vinculantes: a Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco, o Regulamento Sanitário Internacional (atualizado em 2005) e a Classificação Internacional de Doença. Apesar de não constar no relatório oficial da OMS sobre a sua normatividade, a Constituição da Organização deve ser considerada uma norma vinculante, pois dela emanam as demais normas vinculantes. O novo tratado internacional sobre pandemias pretende ampliar essa lista, criando uma nova norma internacional.
É certo que a adoção de um novo tratado garante maior segurança jurídica e previsibilidade no enfrentamento de pandemias. Entretanto, pelo atual texto (OMS, 2024), não é possível dizer a forma como uma pandemia poderá ser decretada ou mesmo quais os elementos a definem. A pandemia da COVID-19, que serviu como evento-motriz desse tratado, foi estabelecida por uma Declaração do Diretor-Geral em meio a uma conferência internacional.
A declaração de pandemia não se insere no conjunto normativo da OMS. Ainda que a determinação do conceito de norma seja holística, o pronunciamento do Diretor não depende da ratificação pela Assembleia ou pelo Secretariado, sendo uma manifestação pública sobre uma situação. No limite, a implementação de um tratado internacional está sob a avaliação discricionária do Diretor-Geral da Organização.
É preciso reconhecer que a declaração de pandemia moldou de modo significativo a atuação de atores internacionais, até mais do que a norma emanada pela Organização. Ao mesmo tempo em que pavimentou a construção de um modelo de regulação global em prol de embasamento científico e da proteção de grupos vulneráveis, uma “não-norma” regulou a vida social, afetando direitos e garantias individuais. A não regulação da definição de pandemia e das implicações jurídicas em decretá-la torna ainda mais obscura a noção de legalidade no Direito Internacional.
Com a pandemia, verificou-se uma ruptura com os parâmetros tradicionais do significado e da abrangência da “norma”. A influência exercida por uma “não-norma” indicou que a capacidade de ação dos organismos internacionais ultrapassa as fronteiras das normas formalmente instituídas. Esse fenômeno aponta para a emergência de um Direito que se torna mais maleável e permeável a forças políticas e necessidades sociais urgentes, ainda que isso implique uma instabilidade jurídica. Na discussão de um novo tratado internacional para pandemias, cabe à comunidade internacional refletir sobre os limites e potencialidades desse novo paradigma normativo, que se revela, ao mesmo tempo, como um desafio e uma oportunidade para a governança global.
Autores
Paula Wojcikiewicz Almeida
Professora da FGV Direito Rio, coordenadora do Centro de Pesquisa em Direito Global (CPDG) e do Centro de Excelência Jean Monnet EU-South-America Global Challenges, co-financiado pela Comissão… ver maisPaula Wojcikiewicz Almeida
Professora da FGV Direito Rio, coordenadora do Centro de Pesquisa em Direito Global (CPDG) e do Centro de Excelência Jean Monnet EU-South-America Global Challenges, co-financiado pela Comissão Europeia. Doutora summa cum laude em Direito Internacional e Europeu pela École de droit de l’Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne.
Matheus Rodrigues Silva de Castro
Pesquisador do Centro de Pesquisa em Direito Global (CPDG) da FGV Direito Rio. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e pós-graduado pela Escola de Magistratura… ver maisMatheus Rodrigues Silva de Castro
Pesquisador do Centro de Pesquisa em Direito Global (CPDG) da FGV Direito Rio. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e pós-graduado pela Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ).