Direito

A normatividade das organizações internacionais

Autor
Paula Wojcikiewicz Almeida
Matheus Rodrigues Silva de Castro
Data

A Organização Mundial da Saúde (OMS) realizou, no fim de 2024, a 12ª reunião do Órgão de Negociação Intergovernamental, cuja principal atribuição é a criação de um Tratado Internacional sobre Pandemias. O projeto, em discussão há dois anos, foi reacendido em meio às discussões da Monkeypox, mas ainda encontra resistências quanto à criação de um sistema multilateral para acessar patógenos com potencial pandêmico e os insumos usados para combatê-los (O Globo, 2024; Médicos sem Fronteiras, 2023). Além de outros questionamentos (Lancet, 2024; EJIL: Talk!, 2024), o tratado deixa de responder duas questões centrais: qual a definição de uma pandemia e quais as implicações jurídicas de se declarar uma situação como pandemia?

 

CONTEXTUALIZAÇÃO

O Diretor-Geral da OMS, Dr. Tedros Adhanom Ghebreyesus, declarou que a Organização elevou o estado de contaminação da COVID-19 ao estágio de pandemia (OPAS, 2020) no dia 11 de março de 2020. Embora a Organização não tenha emitido qualquer declaração oficial por escrito, a declaração orientou e moldou a atuação de atores internacionais, como Estados e organizações internacionais. 

A avaliação foi uma mudança de avaliação da própria OMS que, em 30 de janeiro, havia declarado que o surto de coronavírus constituia uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII ou PHEIC, no inglês). No Brasil, o Ministro da Saúde, Luís Henrique Mandetta, afirmou que nada mudaria com a nova definição (G1, 2020). A própria OMS indicou que a descrição como pandemia não alteraria a avaliação sobre a ameaça representada por esse vírus (OPAS, 2020). 

É curioso notar que a Declaração de Emergência de Saúde Pública não obteve a mesma aderência que a Declaração de Pandemia. Apenas a partir da declaração de pandemia que medidas concretas foram ostensivamente adotadas, como o fechamento de estabelecimentos e uso de máscaras. Em estudo conduzido pelo Centro de Direito Global, da FGV Direito Rio, observou-se que, nos três poderes, atores institucionais emitiram mais atos referenciando-se à pandemia como fundamento para seus atos do que a ESPII.

Mais curioso notar que, ao passo que a ESPII deriva diretamente de uma norma vinculante da OMS, o Regulamento Sanitário Internacional, aprovado pelo Decreto Legislativo 395/2009, a declaração da Pandemia não possui um fundamento normativo, sendo derivada de práticas da Organização e de guias de atuação (OMS, 2009). Além disso, a ESPII foi emitida como um documento pela OMS (OMS, 2020), com recomendações precisas, em fevereiro de 2020, enquanto a Declaração foi um pronunciamento feito pelo Diretor da OMS durante uma conferência internacional sobre o tema.

Diante dessa situação, é importante analisar o sentido de “norma” dentro do Direito Internacional. A inexistência de padrões normativos faz questionar o positivismo jurídico tradicional, que rege a disciplina jurídica vigente. Para Kelsen, a norma “é a fonte comum de validade de todas as normas pertencentes a uma mesma ordem normativa” (Kelsen, p. 269). Para Raz, as leis devem ser prospectivas, abertas, claras e estáveis (Raz, p. 15). Já para o Direito Internacional essa lógica de regras parece, em algumas situações, subvertida.

 

A NORMATIVIDADE DA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE

No campo da saúde, a OMS atua como autoridade pública internacional (Von Bogdandy, Dann, Goldman, 2010, p. 5). Segundo o artigo 2º de sua Constituição, a Organização deve atuar como autoridade diretora e coordenadora do trabalho internacional no domínio da saúde. Para estabelecer uma agenda mundial de saúde, ela produz normas e padrões de saúde, além de coordenar as respostas às emergências de saúde global. Embora a palavra “normativa” não seja usada pela Constituição da OMS, ela adota e aprova instrumentos normativos com base na sua legitimidade e autoridade técnica.

Com uma definição holística, as normas da organização são distinguidas entre “instrumentos normativos fundamentais” e “funções normativas de suporte” e podem ser derivados da Assembleia Mundial da Saúde ou do Secretariado. Os instrumentos normativos derivados da Assembleia Mundial incluem convenções, regulamentos e recomendações regulamentares. Os dois primeiros são juridicamente vinculativos, conhecidos como “hard laws”, enquanto as últimas não possuem força vinculativa, já que são negociadas como acordos, e são conhecidas como “soft laws”. Já os atos derivados do secretariado são produtos técnicos e científicos, como avaliações de tendências de saúde, sendo atos não vinculativos.

Até 2024, foram elaborados três documentos vinculantes: a Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco, o Regulamento Sanitário Internacional (atualizado em 2005) e a Classificação Internacional de Doença. Apesar de não constar no relatório oficial da OMS sobre a sua normatividade, a Constituição da Organização deve ser considerada uma norma vinculante, pois dela emanam as demais normas vinculantes. O novo tratado internacional sobre pandemias pretende ampliar essa lista, criando uma nova norma internacional.

É certo que a adoção de um novo tratado garante maior segurança jurídica e previsibilidade no enfrentamento de pandemias. Entretanto, pelo atual texto (OMS, 2024), não é possível dizer a forma como uma pandemia poderá ser decretada ou mesmo quais os elementos a definem. A pandemia da COVID-19, que serviu como evento-motriz desse tratado, foi estabelecida por uma Declaração do Diretor-Geral em meio a uma conferência internacional.

A declaração de pandemia não se insere no conjunto normativo da OMS. Ainda que a determinação do conceito de norma seja holística, o pronunciamento do Diretor não depende da ratificação pela Assembleia ou pelo Secretariado, sendo uma manifestação pública sobre uma situação. No limite, a implementação de um tratado internacional está sob a avaliação discricionária do Diretor-Geral da Organização.

É preciso reconhecer que a declaração de pandemia moldou de modo significativo a atuação de atores internacionais, até mais do que a norma emanada pela Organização. Ao mesmo tempo em que pavimentou a construção de um modelo de regulação global em prol de embasamento científico e da proteção de grupos vulneráveis, uma “não-norma” regulou a vida social, afetando direitos e garantias individuais. A não regulação da definição de pandemia e das implicações jurídicas em decretá-la torna ainda mais obscura a noção de legalidade no Direito Internacional.

Com a pandemia, verificou-se uma ruptura com os parâmetros tradicionais do significado e da abrangência da “norma”. A influência exercida por uma “não-norma” indicou que a capacidade de ação dos organismos internacionais ultrapassa as fronteiras das normas formalmente instituídas. Esse fenômeno aponta para a emergência de um Direito que se torna mais maleável e permeável a forças políticas e necessidades sociais urgentes, ainda que isso implique uma instabilidade jurídica. Na discussão de um novo tratado internacional para pandemias, cabe à comunidade internacional refletir sobre os limites e potencialidades desse novo paradigma normativo, que se revela, ao mesmo tempo, como um desafio e uma oportunidade para a governança global.

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