O novo dilema do comércio e desenvolvimento sustentável?
É preciso atenção a possíveis estratégias usadas por países mais poderosos para exportar custos de ajuste.
Acordos de comércio incluem provisões cada vez mais rigorosas para a proteção dos direitos do trabalhador e do meio ambiente. Por exemplo, hoje os acordos preferenciais de comércio assinados pela União Europeia contêm cláusulas de desenvolvimento sustentável legalmente vinculantes. Não era assim durante os anos 1990. Para aproveitar o potencial positivo dessa tendência, precisamos antecipar um possível dilema que ela pode gerar.
Apesar de não serem uma panaceia, cláusulas de desenvolvimento sustentável em acordos de comércio podem gerar efeitos positivos sobre leis de proteção do meio ambiente e do trabalhador. E quanto mais fortes essas cláusulas, mais críveis são os compromissos assumidos. Comércio internacional pode então ser um instrumento em favor da sustentabilidade. É preciso atenção a possíveis estratégias usadas por países mais poderosos para exportar custos de ajuste.
No entanto, a relação entre comércio e desenvolvimento sustentável gera ganhadores e perdedores. Exigências rigorosas de proteção ambiental, por exemplo, podem gerar altos custos de ajuste sobre empresas de setores mais poluentes. E o embate político entre atores domésticos de potências comerciais pode gerar resultados preocupantes para países do Sul Global.
Um exemplo relevante e ilustrativo é o acordo entre Estados Unidos, México e Canada (USMCA, abreviação em inglês). O acordo possui as mais fortes cláusulas de proteção do trabalhador e do meio ambiente já presentes em um acordo de comércio. Para que essas cláusulas pudessem ser incluídas no acordo, algumas concessões relevantes tiveram que ser feitas, principalmente na área de direitos do trabalhador.
Custa caro criar e implementar padrões trabalhistas mais rigorosos. Grupos empresariais estadunidenses temem, por exemplo, que cláusulas rigorosas de proteção dos trabalhadores em acordos de comércio gerem um efeito de rebote e forcem o governo dos EUA a mudar suas leis trabalhistas, o que traria altos custos de ajuste. Ao mesmo tempo, sindicatos exigem a imposição de provisões trabalhistas rigorosas por intermédio do acordo. Muitos desses grupos esperam a aplicação dessas cláusulas ao próprio EUA, precisamente como uma forma de forçar o governo a melhorar padrões trabalhistas domésticos.
O resultado desse embate político é interessante e ao mesmo tempo preocupante. O USMCA institucionaliza um mecanismo de resolução de disputas trabalhistas no qual é muito mais difícil processar os Estados Unidos e o Canadá do que o México. Tanto isso é verdade que um congressista estadunidense defendeu as rigorosas cláusulas de trabalho do USMCA afirmando para o seu eleitorado que elas “não os afetariam de maneira alguma”. Não é exagero dizer que o embate doméstico entre grupos de interesse estadunidenses de relevo só foi mitigado pela introdução da diferença de acesso ao mecanismo de solução de disputas do USMCA.
O que isso nos diz? É plausível afirmar que quanto mais fortes as cláusulas de desenvolvimento sustentável em acordos de comércio, mais concessões serão necessárias para assegurar a viabilidade política desses acordos. O risco, bem ilustrado pelo USMCA, é que esses custos podem ser externalizados sobre parceiros econômicos com menor poder de barganha na mesa de negociação. Essa externalização pode gerar um efeito triplo.
Primeiro, ela pode levar a um questionamento da legitimidade da relação entre comércio e desenvolvimento sustentável ao introduzir diferenças de procedimento que podem ser vistas como injustas. Segundo, ela pode minar a efetividade desses acordos ao trazer oportunidades de mudança em alguns contextos mais do que em outros. Terceiro, ela pode passar a impressão de que a adoção de cláusulas de desenvolvimento sustentável mais fortes por vias comerciais só é possível se subordinada a assimetrias de poder.
Temos, então, um possível dilema. Ao mesmo tempo em que o compromisso em favor do desenvolvimento sustentável pode ser beneficiado pelo maior rigor de provisões de sustentabilidade em acordos de comércio, esse maior rigor pode exigir concessões políticas que acabam por minar a legitimidade e efetividade dessas provisões.
Esse dilema tende a ser cada dia mais pungente, já que acordos de comércio com provisões rigorosas de desenvolvimento sustentável são cada vez mais numerosos. Assim, por mais que hoje a discussão sobre a relação entre comércio e desenvolvimento sustentável seja menos saliente do que nos anos 1990 e começo dos anos 2000, o debate exige atenção redobrada.
A resolução desse dilema não é simples. Apenas rejeitar cláusulas de trabalho e meio ambiente mais fortes como uma forma de protecionismo disfarçado não resolve. Primeiro por não ser politicamente viável.
A inclusão de cláusulas de desenvolvimento sustentável em acordos de comércio é cada vez mais uma condição necessária para a aprovação desses acordos. Segundo porque a questão é mais complexa do que isso. Há, claro, grupos buscando o protecionismo disfarçado. Mas há também grupos promovendo a relação entre comércio e desenvolvimento sustentável para contrabalancear a transferência de poder para a mão de atores econômicos. Ou então para buscar caminhos alternativos para reforçar leis domésticas.
Em um contexto no qual compromissos de sustentabilidade são em sua maioria voluntários, a tendência de acordos comerciais com compromissos de sustentabilidade legalmente vinculantes pode ser uma oportunidade. É preciso, no entanto, atenção às possíveis estratégias utilizadas por países mais poderosos para exportar custos de ajuste conforme esses compromissos ficam mais fortes. E o diabo está nos detalhes. A exigência diferenciada de resolução de disputas entre México, Estados Unidos e Canadá foi introduzida por meio de notas de rodapé.
Em suma, passamos por um momento-chave para a relação comércio e desenvolvimento sustentável. Temos um possível dilema com causas políticas complexas. Para entendermos melhor como reagir a esse dilema, atenção às nuances políticas por trás do comércio e desenvolvimento sustentável é essencial.
O artigo foi publicado originalmente em 5 de setembro de 2022 no Valor Econômico.
*As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional da FGV.
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- 09/02/2023Rodrigo Fagundes Cezar