O Brasil à espera de uma Lei Geral dos Temporários
Está de volta o debate sobre um possível impulso à modernização das administrações públicas, que pode ser ajudada por novas normas jurídicas. Na Câmara, o deputado Pedro Paulo (PSD-RJ), por designação do presidente Hugo Motta, está liderando o grupo de trabalho sobre o assunto e promete um plano para as próximas semanas.
A Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp) também lançou, com amplo apoio, um manifesto pela reforma administrativa pedindo mais eficiência do serviço público, reunindo ideias que já vinham sendo debatidas. Entre elas, a proposta, encampada anteriormente pelo Movimento Pessoas à Frente , de se editar, por meio de lei nacional, “normas gerais para contratação temporária de agentes no setor público”.
A solução se baseou em diagnóstico de pesquisa da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP), cujo resultado final saiu em 2021. Pesquisas já haviam motivado a elaboração, por essa entidade acadêmica, de textos de emendas à medida provisória 922, de 2020. Com o apoio da República.org, elas foram apresentadas à época por parlamentares (a SBDP preparou um levantamento sobre todas as emendas), mas o Congresso não apreciou no prazo a medida, que caducou.
Desde então, a ideia original da SBDP veio sendo debatida em eventos acadêmicos e foros de secretários de administração e de educação. Agora, com o grupo de trabalho da Câmara dos Deputados, há mais uma chance de o tema avançar.
Embora muita gente não perceba, é grande o número de trabalhadores no serviço público que não têm a estabilidade e a remuneração dos servidores efetivos. São destaque os agentes públicos especiais temporários. A categoria sempre existiu no Brasil e está autorizada desde 1988 pelo art. 37, IX da Constituição. É o grupo que mais tem crescido em serviços essenciais: nas redes estaduais de ensino mais de 50% dos professores são hoje temporários.
Um desafio é que tais agentes não têm regime jurídico único: casos, procedimentos e regras de contratação seguem leis, regulamentos e práticas de cada ente da Federação. A pulverização, se por um lado propicia rapidez e flexibilidade, em várias situações vem gerando insegurança jurídica e judicialização, alguma desproteção em direitos básicos (quanto à licença maternidade, por exemplo), manipulações (exemplo: eternização de vínculos com prorrogações) e, no geral, baixa transparência quanto a processos e resultados.
Contratações temporárias são sim importantes. Por isso têm crescido. Alguns sistemas de ensino público tiveram avanços, entre outros fatores, pela ampliação dos docentes temporários. As redes estaduais do Ceará, com cerca de 60% de temporários, e do Espírito Santo, com cerca de 70%, são dois casos. Estudo recente para o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) constatou tratar-se de tendência ascendente na América Latina e Caribe.
Por isso, ao invés de combater as contratações, é preciso aprimorá-las. Como reafirmado pelo estudo, o caminho é garantir “transparência e objetividade nos processos seletivos”, “acesso a oportunidades de treinamento profissional”, “melhorias nas condições de trabalho” e “monitoramento e acompanhamento de desempenho”.
São justamente os eixos da nova proposta de lei geral nacional que acaba de ser finalizada pela entidade que iniciou o debate sobre a solução jurídica, a SBDP, com apoio do Movimento Pessoas à Frente, e que poderá ser apresentada ao grupo de trabalho da Câmara. É uma solução bem enxuta, focada só no essencial: casos gerais em que as contratações são necessárias, controle e governança mínimos, proibições, diretrizes dos processos de contratação e conteúdo básico dos contratos (limites de prazos e prorrogações, deveres e direitos, formas de extinção).
A competência do Congresso Nacional, dada pelo art. 22, XXVII da Constituição, é certa: ela abrange normas gerais de contratação “em todas as modalidades” — incluída, portanto, a contratação de agentes públicos especiais temporários. As normas são nacionais, valendo para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Mas elas não eliminam a competência suplementar dos entes subnacionais, apenas condicionando seu exercício.
Assim, ao mesmo tempo haverá alguma harmonia nacional, importante para a articulação das administrações em torno de valores básicos, e se manterá a diversificação exigida pelas peculiaridades subnacionais, a cargo de cada ente da Federação. É surpreendente que até hoje o Congresso Nacional não tenha criado uma lei assim, mesmo tendo poder para fazer normas gerais sobre quaisquer contratações.
Tal falha já ocorreu no passado em outras matérias administrativas importantes. O Brasil nunca tinha contado com leis nacionais sobre parcerias do estado com a iniciativa privada em serviços estatais. O problema só foi resolvido em 1995, com a Lei de Concessões, e 2004, com a Lei de PPP. Isso impulsionou os projetos, investimentos e serviços, com resultados muito expressivos. Outro exemplo é a Lei Nacional de Concursos Públicos, que o Brasil não tinha até há pouco. Felizmente, o Congresso fez a lei 14.965, de 2024, para fortalecer e melhorar os concursos em todo o Brasil.
Ao longo do tempo, grandes avanços foram impulsionados pelo exercício responsável da competência nacional do Congresso em matéria administrativa, em especial quanto a contratações. É hora de debater a sério mais uma medida, com efeitos sobretudo nos serviços que chegam diretamente às pessoas: educação, saúde e assistência social. E melhor: nada disso exigirá emenda constitucional, cujo quórum só é alcançado se o Congresso se curvar a lobbies corporativos. Basta uma boa lei ordinária.
*Artigo publicado originalmente no jornal O Globo em 06/06/2025
Autores
Carlos Ari Sundfeld
Doutor (1991), Mestre (1987) e Bacharel (1982) em Direito pela PUC-SP, da qual foi professor no Doutorado, Mestrado e Graduação (1983-2013). Na FGV Direito SP, de que foi um dos fundadores, é… ver maisCarlos Ari Sundfeld
Doutor (1991), Mestre (1987) e Bacharel (1982) em Direito pela PUC-SP, da qual foi professor no Doutorado, Mestrado e Graduação (1983-2013). Na FGV Direito SP, de que foi um dos fundadores, é Professor Titular, atuando no Doutorado e Mestrado Acadêmico, no Mestrado Profissional e no Grupo Público.