O mercado de crimes e o ensaio da guerra
No meu tempo não era tão fácil cometer um crime. Era preciso talento para forjar um documento e apenas um verdadeiro hacker conseguia derrubar um site para extorquir o dono. Foram-se os tempos!
Os criminosos de hoje têm tudo de mão beijada: invadir um site para roubar-lhe os dados, simular a voz do filho para exigir dos pais resgate, ou fazer um avatar de um falecido para se passar por ele em uma prova de vida – tudo isso pode ser comprado nos mercados de Fraud as a Service (FaaS) e Cybercrime as a Service (CaaS). O crime foi democratizado e está ao alcance de todos que podem pagar por ele.
Longe de ser meros trocados de moleques no sótão de um sobrado abandonado, os crimes cibernéticos custarão ao mundo US$ 10,5 trilhões em 2025, diz o Fundo Econômico Mundial. Isso é cerca de metade do PIB chinês e um terço do americano. Se os crimes cibernéticos fossem um país, seriam a terceira maior economia do mundo.
Fotos, senhas, deep fakes e kits que permitem até mesmo um leigo em tecnologia invadir um site: tudo isso está à venda. Vamos ser claros sobre o que isso significa. Sabe aquela foto que você tira segurando o RG para identificar-se no app do banco? Aquela entrevista com um agente do governo para prova de vida? Aquela mensagem de voz da sua mãe ou o reconhecimento facial na escola do seu filho? Pois bem. Existe um mercado em que tudo isso pode ser comprado. Vimos um exemplo disso quando o CFO de uma multinacional britânica solicitou a um empregado sediado em Hong Kong que fizesse uma transferência de US$25 milhões. O empregado cumpriu o que lhe foi pedido. Nem percebeu que o CFO e todos os demais presentes na reunião eram pessoas falsas, geradas por IA.
Agora, vamos jogar um jogo. Prove-me que você é você. Não vale usar documentos, fotos, voz ou vídeos, já que tudo isso pode ser falsificado com excelente precisão. Como você me prova que é realmente o João, titular da conta bancária 1234, dono da casa 5 na rua Seis e pai desta criança que te acompanha no aeroporto? Como ficam as seguradoras, se uma IA é capaz de transformar a foto de um carro zero na foto do mesmo carro amassado? Como fica o sistema financeiro, que vê nas práticas de Know Your Customer (KYC) os alicerces dos sistemas de prevenção à fraude, à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo? Se não podemos confiar no que vemos ou ouvimos, como fica a sociedade?
Pois é. É por isso que o CaaS não é um joguete de moleques, mas um campeonato de países. As mesmas competências utilizadas para o crime podem ser utilizadas para a espionagem e para a guerra. O mesmo grupo que, em tempos de paz, invade o site de um banco para roubar-lhe dados sigilosos pode, em tempos de guerra, derrubar a eletricidade de um país (como ocorreu com a Ucrânia já em 2015) ou invadir os sistemas da empresa de água e, sem alarde, pouco a pouco envenenar-lhe a população. Em 2024, por exemplo, o serviço secreto americano alertou que China e Irã haviam conseguido hackear a Casa Branca. Isso levou alguns funcionários do governo Biden a intensificaram a comunicação via um aplicativo não oficial, onde o compartilhamento de informações sigilosas não era autorizado pelo governo e onde, no governo Trump, um repórter que não deveria estar no grupo teve acesso a planos de guerra.
Guerra. Se seus tambores rufam longe da terra onde canta o sabiá, os crimes cibernéticos gorjeiam bem perto de nós. Segundo o instituto Data Senado, do Senado Federal, os golpes digitais vitimaram cerca de 24% dos brasileiros com mais de 16 anos entre junho de 2023 e de 2024: 40,85 milhões de pessoas perderam dinheiro em função de algum crime cibernético, como clonagem de cartão, fraude na internet ou invasão de contas bancárias.
Além disso, o Brasil já foi palco de ataques de grande escala, como a invasão ao site do STJ em 2020, ou o sequestro de dados do Ministério da Saúde que derrubou o Conecte SUS, em 2021. Em 2022, o TCU identificou que cerca de 75% das organizações públicas não possuem políticas de backup e, dentre as que possuem, 66% não usam criptografia. Em relatório, o Tribunal classificou a cibersegurança como uma vulnerabilidade de alto risco na administração pública brasileira, motivando a promulgação da Política Nacional de Cibersegurança (PNCiber) em 2023.
Políticas são necessárias, mas não são suficientes. Para o Brasil enfrentar os criminosos do mundo cibernético, é crucial que domine dois grupos de tecnologia.
O primeiro grupo reúne as tecnologias que alicerçam os sistemas de identificação do cidadão, a exemplo do Aadhaar, que coleta dados biométricos de 99,9% da população adulta da Índia e media seus acessos a toda sorte de serviços públicos e privados. No Brasil, dispomos desde 2022 da Carteira de Identidade Nacional (CIN), que traz validação biométrica e QR Code digital.
O segundo grupo (este, o mais importante) são as tecnologias da Inteligência Artificial (IA). Hábil em detectar padrões suspeitos e capaz de se adaptar a táticas inimigas em contínua mudança, a IA é uma ferramenta indispensável para se combater a infinita criatividade das mentes criminosas – que, diga-se de passagem, também se valem da IA para cometer crimes cada vez mais sofisticados.
Neste sentido, o uso de IAs proprietárias de outros países é uma faca de dois gumes. Por um lado, há que se aprender com a tecnologia que é de ponta. Por outro, usar essas IAs significa entregar nossos dados (potencialmente estratégicos) para que empresas que mal conhecemos os utilizem como quiserem. O argumento foi pauta de um artigo recente na Forbes e não faltam exemplos de empresas que concordam: Amazon, Apple, Citigroup, Deutsche Bank, JPMorgan Chase, Samsung, Verizon e Walmart, todas restringiram (em maior ou menor grau) o uso de IAs para seus funcionários, temendo o vazamento de informações confidenciais.
Vários motivos já foram dados para desenvolver uma indústria de IA brasileira: desenvolver o Brasil social e economicamente, endereçar a questão da fuga de cérebros, reduzir a nossa dependência dos outros países em uma geopolítica cada vez mais individualista, colocar nossa matriz energética limpa à serviço do enfrentamento às mudanças climáticas... este é mais um: proteger-nos de crimes que, outrora sofisticados, agora já são commodity.
*Artigo publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 12/05/2025
Autores
Felipe Buchbinder
Professor do curso de Graduação da FGV EBAPE. Possui vivência internacional em Lyon (França), onde realizou um ano de sua graduação com bolsa da CAPES, e em Londres (Reino Unido), onde foi… ver maisFelipe Buchbinder
Professor do curso de Graduação da FGV EBAPE. Possui vivência internacional em Lyon (França), onde realizou um ano de sua graduação com bolsa da CAPES, e em Londres (Reino Unido), onde foi alfabetizado. Interessa-se, sobretudo, pelo desenvolvimento de modelos matemáticos e estatísticos aplicados à Administração, com ênfase particular às áreas de Estratégia Competitiva e Negócios Internacionais.