Direito

Patentes, licenciamento compulsório e saúde pública

Autor
Walter Britto Gaspar
Data

A pandemia do novo Coronavírus (COVID-19), ao tensionar recursos públicos e privados de forma absolutamente radical e imprevisível, trouxe à tona antigos problemas de maneira premente. Dentre muitas das questões de política pública debatidas à luz da crise atual, um assunto recorrente é o papel que o sistema de propriedade intelectual - especialmente as patentes - desempenha na dinâmica de acesso a medicamentos e outras tecnologias de saúde.

Para o leitor não acostumado ao tema, a conexão pode não ser imediata. No entanto, a discussão acerca do embate entre patentes e acesso a medicamentos é de longa data, havendo disposições específicas em instrumentos internacionais sobre o tema e um sólido corpo de pesquisa. Um dos temas que frequentemente é citado ao se tratar da dicotomia patentes-saúde pública é a aplicação do licenciamento compulsório por autoridades nacionais. Em termos correntes, trata-se da “quebra de patentes”. Para entendê-la, é necessário explicar brevemente o funcionamento das patentes.

Quando uma patente é concedida, cria-se um direito exclusivo de exploração comercial da tecnologia descrita por ela - o “objeto” da patente. Em outras palavras, o detentor da patente pode impedir que outros entrem no mercado. Ele pode também licenciar - autorizar mediante contrato - sua entrada, sob condições específicas de preço, distribuição territorial etc. Este direito dura 20 ou 15 anos, dependendo do tipo de patente, contados da data do depósito do pedido (recentemente, o STF, em decisão histórica, declarou inconstitucional dispositivo da lei que permitia a extensão desse prazo; o CTS e o NPJ da FGV participaram do caso como amici curiae ao lado da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS).

Quando se realiza uma “quebra de patente”, um governo autoriza a exploração legítima do seu objeto por outros atores além do detentor da mesma. Ao contrário do que se pode comumente acreditar, a quebra de patentes não é uma anulação da patente ou um confisco gratuito do objeto patenteado. Como o nome técnico - “licenciamento compulsório” - revela, trata-se de um licenciamento, portanto remunerado e por tempo determinado. Sua característica marcante, e que a diferencia da licença voluntária, é a sua compulsoriedade: ela é emitida à revelia do detentor da patente, em condições definidas pelo poder público.

Licenciamento compulsório e COVID-19

O Senado aprovou, em 29 de abril, o projeto de lei (PL) n. 12/2021, que trata do licenciamento compulsório de patentes ou pedidos de patente que possam ser úteis no enfrentamento a uma emergência ou calamidade nacional. O texto, que tramita agora na Câmara dos Deputados, inclui a atual Emergência de Saúde Pública Nacional ocasionada pelo COVID-19 em seu âmbito de aplicação.

Se aprovada, o Executivo Federal teria 30 dias contados de sua publicação para compor, a partir de subsídios da sociedade civil, uma lista de patentes que cumpram o interesse indicado, e mais 30 dias para a emissão das licenças compulsórias, sob pena de concessão automática das mesmas. A remuneração inicial ao detentor da patente seria de 1,5% sobre o preço líquido de venda do produto.

Além deste, tramitam na Câmara os PL n. 1.320, 1.462 e 2.858 (apensados ao primeiro) e 1.184, e mais uma série de PLs, com disposições no sentido de facilitar ou acelerar a concessão da licença compulsória. É importante notar, no entanto, que, mesmo como está atualmente, a lei de patentes já prevê a possibilidade do licenciamento compulsório - tanto por mau uso da patente pelo detentor, quanto em casos de emergência nacional ou interesse público. O que os PLs pretendem fazer é agilizar a sua concessão, dar força ao instituto e expandir seu escopo.

Além destes desenvolvimentos nacionais, em diversos países, desde os primeiros meses de 2020, pode-se citar pleitos pelo licenciamento compulsório. Chile, Equador, Austrália, França, Canadá e Alemanha viram emergir debates concretos acerca da facilitação do licenciamento compulsório, despontando em atos normativos em algumas destas localidades.

Ainda no cenário internacional, Índia e África do Sul levaram à Organização Mundial do Comércio (OMC) proposta de suspensão de uma série de obrigações dos países-membros em relação à propriedade intelectual para enfrentamento da pandemia. Atualmente, 62 países subscrevem a proposta, que recebeu declarações de apoio dos Estados Unidos e da China, bem como um possível aceno positivo por parte do governo brasileiro.

Patentes e saúde pública

O interesse na suspensão de direitos patentários ou no licenciamento compulsório tem diversos fundamentos. O mais evidente é o preço: produtos sob exclusividade de apenas um fornecedor são mais caros. Tomando por referência o Efavirenz, único caso de licenciamento compulsório executado no Brasil, a economia reportada pelo Ministério da Saúde foi de 58%, ou 104 milhões de dólares, de 2007 a 2012.

No entanto, outros fatores são importantes, e ainda mais no contexto pandêmico. O desenvolvimento de novos medicamentos, vacinas e quaisquer tipos de inovações pode ser congelado por controvérsias envolvendo patentes; e a capacidade produtiva global é igualmente obstada pelos direitos patentários. Disto nasce a luta por não apenas lançar mão das flexibilidades já instituídas, mas também introduzir a suspensão de direitos de propriedade intelectual no contexto da pandemia.

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