PL das Fake News dispara alerta sobre necessidade de maior participação social no Processo Legislativo

Apesar da situação de isolamento social impossibilitar a participação presencial dos atores interessados no debate, já existem diversas ferramentas de participação online disponíveis nos portais da Câmara (e-Democracia) e do Senado (e-Cidadania), que deveriam ser melhor exploradas para esse fim

Direito
05/06/2020
Julia Iunes Monteiro

No dia 1º de abril de 2020 foram protocolados, tanto na Câmara dos Deputados como no Senado Federal, os Projetos de Lei n° 1.429/2020 (novo 2.927/2020), de autoria dos deputados Felipe Rigoni e Tábata Amaral, e nº 1.358/2020 (novo 2.630/2020), de autoria do Senador Alessandro Vieira. Ambos, com igual redação, instituem a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet.

A proposta, que logo ficou conhecida como “PL das Fake News”, tem sido alvo tanto de elogios como de críticas e levanta preocupações legítimas acerca do cenário de desinformação online e sobre os deveres a serem assumidos pelas plataformas de redes sociais neste contexto. Em que pese a controvérsia em torno deste projeto em particular, esta não é a única proposta em trâmite no Congresso propondo soluções para a desinformação. Pesquisa realizada pelo Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV-Rio sobre os projetos de lei que visam alterar o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965) aponta que existem ao menos 40 propostas em trâmite sobre o tema. Mas então por que este em específico se tornou o foco das atenções?

Podemos citar dois fatores principais, um de ordem substantiva e outro de ordem procedimental. Em primeiro lugar, este PL se diferencia das outras dezenas de projetos em trâmite por trazer propostas antes não veiculadas no debate legislativo brasileiro. De modo geral, os diversos projetos em curso buscam enfrentar o problema da desinformação recorrendo a três abordagens principais: i) por meio de sanções aos usuários que criam e/ou compartilham notícias falsas; ii) estabelecendo a vedação ao anonimato nas redes iii) propondo mudanças ao regime de responsabilização das plataformas adotado pelo Marco Civil.

O projeto em questão também investe em abordagens como essas, mas vai além, ao estabelecer diretrizes procedimentais para atuação dos provedores de aplicação, assim como recomendações de transparência acerca do processo de moderação de conteúdo levado a cabo por essas plataformas. Em que pese a necessidade de aprofundamento do debate e ajustes, o projeto dá passos importantes ao considerar, por exemplo: i) a necessidade de transparência quanto a conteúdos patrocinados; ii) a atuação conjunta das plataformas com verificadores de fatos independentes; iii) o dever dos provedores de aplicação em fornecer um mecanismo acessível para o usuário reportar desinformação; iv) o estabelecimento de um devido processo para a moderação de conteúdo, através da notificação e exposição de motivos ao usuário afetado bem como de v) mecanismos de contestação e recursos sobre as decisões tomadas pelas plataformas.

O segundo fator responsável por atrair atenção sobre o projeto é de ordem procedimental e levanta preocupações sobre a falta de oportunidades de participação do público no debate. Em pouco mais de 1 mês após o protocolo da matéria no Senado, foi anunciado que o projeto seria colocado em pauta para votação, o que ocorreria na terça-feira passada, dia 02 de junho. A votação, no entanto, foi adiada, diante da forte oposição da sociedade. Neste sentido, diversas notas técnicas foram divulgadas por institutos de pesquisa como a Coding Rights, Coalizão Direitos na Rede, Intervozes, IRIS, ITS-Rio e LAPIN se opondo à votação apressada do tema, indicando a necessidade de diálogo com a sociedade civil e veiculando críticas e sugestões para o aprimoramento da proposta.

Dentre as principais críticas veiculadas ao conteúdo da proposição, encontram-se as de que o projeto: i) inverte o regime de responsabilidade de provedores previsto no Marco Civil da Internet, estimulando a vigilância e a censura; ii) suscita preocupações quanto à proteção de dados pessoais dos usuários; iii) possui imprecisões conceituais que demandam aprofundamento técnico, como, por exemplo, nos conceitos de “desinformação”, “conta inautêntica” e “disseminadores artificiais”; iv) e, ao focar na proibição de contas falsas (inautênticas), propõe soluções que, na prática, podem colocar em risco o anonimato na rede e o uso de pseudônimos, ou de contas automatizadas para finalidades completamente legítimas, democráticas e inofensivas.

Para além do necessário debate sobre o conteúdo da proposta, o “PL das Fake News” também suscita, como dito, uma discussão procedimental. No dia 13 de maio, o PL 1358/2020 foi retirado de tramitação em caráter definitivo no Senado a pedido de seu próprio coautor, o Senador Alessandro Vieira, e substituído, no mesmo dia, por um novo texto, o PL 2630/2020. Aparentemente, o intuito foi fazer modificações ao texto inicial sem que isso demandasse o procedimento tradicional de emendas. Além de burlar o curso natural de tramitação e desenvolvimento de um projeto de lei, esse tipo de manobra dificulta o acompanhamento da sociedade sobre a evolução da discussão no curso do processo legislativo. A falta de transparência no processo também configura um obstáculo à participação de atores externos ao Parlamento, especialmente neste momento de pandemia, em que a interação presencial é limitada e os mecanismos de participação do público no processo legislativo se mostram incertos.

A segunda falha de procedimento se deu ao se enviar a proposta diretamente à votação, sem que ela pudesse ser discutida nas Comissões Temáticas. Este momento é essencial para se conferir expertise ao processo legislativo, a partir da realização de audiências públicas e da participação da sociedade. Este seria justamente o momento processual adequado para a oitiva de especialistas no tema, no intuito de sanar as imprecisões técnicas do projeto, aprofundar o debate e possibilitar a apresentação de propostas adicionais, especialmente as veiculadas pelas notas técnicas já citadas.

Apesar da situação de isolamento social impossibilitar a participação presencial dos atores interessados no debate, já existem diversas ferramentas de participação online disponíveis nos portais da Câmara (e-Democracia) e do Senado (e-Cidadania), que deveriam ser melhor exploradas para esse fim. Exemplo disso são as audiências públicas interativas, que possibilitariam a contribuição de especialistas para o aprimoramento do projeto.

O risco de uma votação apressada permanece

Apesar de o projeto ter sido retirado de pauta, ainda assim, notícias indicam que a votação será remarcada para a próxima semana, o que pode vir a resultar na aprovação da lei sem qualquer participação social, configurando grave violação ao devido processo legislativo. O atual contexto de saúde pública não pode ser utilizado como escusa para o Congresso “fechar as portas”, prejudicando a fiscalização e a participação da sociedade sobre o processo de elaboração das leis. Pelo contrário, a atuação online do Parlamento deve ser vista como um motivo – senão uma grande oportunidade – para o incremento dos valores democráticos, tendo em vista, inclusive, o papel da tecnologia em ampliar as possibilidades de interação entre sociedade e governo.

A necessidade de incremento dos mecanismos de participação social

Por enquanto, o PL das Fake News está sendo objeto de consulta pública no e-Cidadania e também foi disponibilizada no e-Democracia uma ferramenta de edição colaborativa da proposta. No entanto, o prazo exíguo da consulta, de apenas 10 dias, revela, mais uma vez, a necessidade de maior abertura ao diálogo, como ocorreu, por exemplo, no processo de aprovação do Marco Civil da Internet, que contou com diversas consultas públicas realizadas, inclusive, nos portais acima indicados.

Verifica-se que, mais do que uma exigência procedimental, a participação cívica pode ser fonte de informação e maior qualidade ao processo legislativo. As diversas proposições de centros especializados em regulação da internet revelam não só que o público tem muito a contribuir com o governo, como também a necessidade de se explorar os mecanismos de participação que permitam esse diálogo. O sucesso do “PL das Fake News” e do combate à desinformação no Brasil depende, mais do que nunca, da abertura dos processos políticos à colaboração da sociedade e da atualização da participação digital às novas demandas do século XXI.

*As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional da FGV.

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Autor(es)

  • Julia Iunes Monteiro

    Pesquisadora no Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV Direito Rio. Doutoranda em Teoria do Estado e Direito Constitucional na PUC-Rio. Mestre em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ.

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