O “remédio mais caro do mundo” e os dilemas do SUS e do STF
A ANVISA recentemente aprovou o registro do medicamento Zolgensma para o tratamento da atrofia muscular espinhal (AME), doença rara que causa paralisia muscular progressiva. Embora mais estudos sejam necessários, inclusive para atestar a sua segurança a longo prazo, o registro foi concedido em caráter excepcional pela gravidade da doença, pela ausência de alternativa terapêutica e porque as pesquisas existentes apontam para maior sobrevida, redução da necessidade de auxílio de aparelhos para respirar e melhora no desenvolvimento motor dos pacientes com o medicamento.
O fato de um tratamento tão promissor estar disponível é uma excelente notícia que traz uma preocupação. Ainda não se sabe o preço do tratamento no Brasil, mas nos EUA ele custa US$2,1 milhões (R$12 milhões) por paciente. Isso torna impossível a sua aquisição por famílias e cria um dilema para o SUS.
Registro na ANVISA não significa a incorporação pelo SUS para distribuição gratuita. A concessão do registro é apenas a autorização para que o produto entre no mercado nacional. A incorporação passa por outro processo, que considera diversos fatores, incluindo custo. Nem sempre se quer falar em dinheiro quando se discute saúde, mas como o orçamento é limitado e há mais necessidades que recursos, eventual incorporação de um tratamento tão caro inevitavelmente retirará recursos de outras políticas de saúde.
Se, por ano, há 3 milhões de nascimento no Brasil, e 1 a cada 10.000 crianças nascem com AME, então 300 crianças por ano nascem com AME no Brasil. Considerando que metade delas terão AME do tipo 1, para o qual Zolgensma foi aprovado, o custo do seu fornecimento universal pelo SUS ao preço praticado nos EUA será de R$1,8 bilhões por ano. Isso é 10% do gasto anual de União, Estados e Municípios com todos os quase mil tratamentos da relação de medicamentos do SUS, o dobro do gasto anual com drogas para DST/AIDS e três vezes o valor acordado pelo governo brasileiro para produzir 30,5 milhões de doses de vacina para Covid-19 atualmente em teste.
Zolgensma está longe de ser um caso isolado. O SUS já tem fornecido, via judicialização ou incorporação, tratamentos de altíssimo custo como o Soliris e o Spinraza. Muitos outros tratamentos com preços elevados logo entrarão no mercado. O FDA, órgão regulador americano correspondente à ANVISA, prevê que até 2025 aprovará de 10 a 20 terapias gênicas, como o Zolgensma, por ano.
Portanto, é preciso que como sociedade tenhamos uma discussão muito séria sobre o financiamento do SUS, quanto estamos dispostos a gastar com inovações em saúde e quais as consequências distributivas de nossas escolhas. Por isso, mais do que nunca, é necessário que se atente à economia da saúde para decidir quais tecnologias serão incorporadas.
Existem alguns métodos para guiar essa discussão. Um deles é a análise de custo-efetividade, que avalia a relação entre o benefício trazido por um novo tratamento e o seu custo. Tratamentos cujos ganhos em saúde não justificam o seu preço muito elevado não são incorporados porque consomem recursos que poderiam ser empregados em intervenções que trazem grandes ganhos a baixo custo. Outro é a análise de impacto orçamentário, em que se estabelece um limite para o custo total que o sistema de saúde aceita gastar com um tratamento para evitar que a sua incorporação inviabilize outras políticas de saúde.
Análises de custo-efetividade e de impacto orçamentário já são previstas em lei e aplicadas pelo Ministério da Saúde, mas precisam ser melhor conhecidas e compreendidas pela sociedade. Assim, poderão ser aprimoradas, aplicadas com mais consistência e respaldadas pela opinião pública e tomadores de decisão, mesmo quando os resultados são frustrantes para pacientes.
A análise econômica pode levar à difícil decisão de não fornecer um tratamento. Contudo, a experiência internacional mostra que mais comumente ela é utilizada para dar a sistemas de saúde poder de barganha na negociação de preços e condições com a indústria farmacêutica, o que certamente será necessário no caso de tratamentos como o Zolgensma.
Porém, esse tipo de análise pode ser seriamente dificultado a depender do resultado de um julgamento que será concluído pelo STF ainda esta semana. Trata-se da decisão que fixará a Tese de Repercussão Geral do Tema 6, que definirá quando pacientes terão o direito de receber tratamentos não incorporados pelo SUS. Duas teses estão em disputa no STF.
Uma, encabeçada pelo Ministro Marco Aurélio, entende que pacientes terão o direito de receber um tratamento não incorporado sempre que conseguirem comprovar a sua necessidade perante um juiz. Ou seja, a necessidade individual que chegou ao Judiciário deve ser atendida independentemente do impacto sobre o sistema de saúde e outros usuários.
A outra, defendida por ministros como Luís Barroso, dá ao SUS o poder de definir quais tratamentos devem ser custeados pelo Estado. Portanto, não há a obrigação de se fornecer um tratamento que os órgãos técnicos do SUS decidiram não incorporar após uma análise de evidência científica, custo-efetividade e impacto orçamentário. Ao Judiciário fica a tarefa de garantir o fornecimento dos tratamentos já incorporados e de decidir excepcionalmente na ausência de uma decisão do próprio SUS.
Se prevalecer a primeira tese, a judicialização provavelmente tirará do SUS instrumentos importantes para evitar que a introdução de tecnologias de alto custo criem inequidades e ameacem a sua sustentabilidade. O resultado será um SUS que gasta cada vez mais para beneficiar um número cada vez menor de pessoas, provavelmente em prejuízo daqueles com menos voz e das políticas com pouca visibilidade mas não menos importantes (como atenção primária e preventiva). Isso manterá e agravará o cenário de um sistema de saúde onde a oferta de tratamento de altíssimo custo convive com desabastecimentos, filas de espera, deterioramento de serviço e a dificuldade do sistema de expandir e de reduzir desigualdades.
Autores
Adriano Massuda
Professor da Escola de Administração de Empresas (FGV EAESP) e membro do FGV Saúde. Médico formado pela UFPR, com residências em Medicina Preventiva e Social e em Administração em Saúde pela UNICAMP… ver maisAdriano Massuda
Professor da Escola de Administração de Empresas (FGV EAESP) e membro do FGV Saúde. Médico formado pela UFPR, com residências em Medicina Preventiva e Social e em Administração em Saúde pela UNICAMP. Fez mestrado e doutorado em Saúde Coletiva na área de Política, Planejamento e Gestão em Saúde na UNICAMP. Suas principais linhas de pesquisa incluem: planejamento e gestão em sistemas de saúde, inovações em sistemas de saúde e avaliação de políticas de saúde.
Daniel Wei Liang Wang
Professor da Escola de Direito de São Paulo (FGV Direito SP). Pós-Doutor e Doutor em Direito pela London School of Economics and Political Science (LSE). Mestre em Filosofia e Políticas Públicas pela… ver maisDaniel Wei Liang Wang
Professor da Escola de Direito de São Paulo (FGV Direito SP). Pós-Doutor e Doutor em Direito pela London School of Economics and Political Science (LSE). Mestre em Filosofia e Políticas Públicas pela LSE. Mestre em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Bacharel em Ciências Sociais pela USP. Bacharel em Direito pela USP. Entre 2016 e 2018, foi membro do Comitê de Ética em Pesquisa do National Health Service da Inglaterra. Atualmente, é membro do Comitê de Bioética do Hospital Sírio-Libanês de São Paulo.
Luís Correia
Professor da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública ver maisLuís Correia
Professor da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública
Ana Carolina Morozowski
Juíza da 3ª Vara Federal de Curitiba, com competência especializada em saúde. ver maisAna Carolina Morozowski
Juíza da 3ª Vara Federal de Curitiba, com competência especializada em saúde.