Segurança Energética na Matriz Brasileira

A posição do Brasil no novo contexto mundial é de aparente distância, mas a dependência do país de importações de gás natural liquefeito (GNL) para atender a geração termelétrica em situações hidrológicas desfavoráveis acende um sinal de alerta para o médio prazo.

Energia
22/12/2022
Diogo Lisbona Romeiro

A segurança energética retornou ao radar de preocupação mundial após os desdobramentos da guerra na Ucrânia para as indústrias de energia. Países europeus enfrentarão um inverno desafiador nos próximos meses face à redução de suprimento do gás natural da Rússia, com possibilidades de corte de energia em períodos de pico. A mudança drástica do portfólio de oferta traz consequências para a segurança e o custo do abastecimento, pressionando preços internacionais de gás natural, com repercussão inflacionária para diversos países.

A posição do Brasil no novo contexto mundial é de aparente distância, mas a dependência do país de importações de gás natural liquefeito (GNL) para atender a geração termelétrica em situações hidrológicas desfavoráveis acende um sinal de alerta para o médio prazo.

Até o início da década de 1970, a lenha ainda era o energético de maior consumo final; quando, a partir de então, os derivados de petróleo se tornam predominantes. A dependência externa de petróleo continuará elevada até a década de 1980, quando a produção offshore começa a se tornar relevante e o país desenvolve biocombustível alternativo (etanol). Na última década o Brasil torna-se exportador líquido de petróleo, mas permanece dependente da importação de derivados, sobretudo de diesel (cerca de 25% da oferta atual é importada). A participação de renováveis é elevada nas matrizes energética (cerca de 45% frente a 14% da média mundial) e elétrica brasileiras (cerca de 80% frente a 25% do mundo), com elevada complementariedade das fontes hidráulica, biomassa, eólica e solar.

A oferta de eletricidade se estruturou em torno do potencial hidráulico, sem dependência externa para o suprimento; porém, nas últimas décadas, a complementação de térmicas a gás tornou-se cada vez mais relevante para atender o consumo em condições hídricas severas.

Já a oferta de gás natural, por sua vez, estruturou-se historicamente com maior exposição à importação – primeiro através do Gasoduto Bolívia-Brasil, em fins da década de 1990, e mais recentemente com a importação de GNL para atender a geração das térmicas. Nos últimos anos, a produção nacional respondeu, em média, por 63% da oferta interna, a importação da Bolívia por 22% e o GNL importado por 15%, superando 30% em períodos de plena geração térmica – mas a contribuição do gás boliviano era relativamente maior nos anos 2000. O GNL é foi o instrumento de flexibilidade definido para a indústria do gás no Brasil lidar com a variabilidade da geração térmica, responsável por dobrar a demanda nos meses de geração elevada. As restrições no mercado mundial de gás, por seu turno, abrem espaço para novos recursos, como a estocagem de gás – conciliando o perfil de oferta inflexível (associada ao petróleo) com a demanda térmica variável.

Figura 1 – Balanço Mensal de Oferta e Demanda de Gás Natural no Brasil (milhões m³/dia)

Fonte: Elaboração própria com dados do MME

Embora a situação no curto prazo seja favorável à geração hidráulica e a evolução do mercado de eletricidade aponte para excesso de oferta nos ambientes livre e regulado nos próximos anos, a exposição à importação de GNL pode pressionar preços e tarifas de eletricidade no médio prazo, a depender da necessidade momentânea de geração. Os custos variáveis das térmicas a gás estão indexados a diferentes preços internacionais, internalizando as condições restritivas do mercado de GNL para o país, incluindo riscos de acesso ao energético face à aquisição dos carregamentos no mercado spot. Enquanto o preço médio do GNL importado ficou em US$ 15,90/MMBtu em 2021, segundo dados do MME, as importações no primeiro semestre de 2022 (bem menores em volume) chegaram a atingir US$ 50/MMBtu.[1]

A segurança energética não está relacionada à independência absoluta de importações de energéticos, como o momento atual pode erroneamente transparecer. As trocas internacionais geram ganhos de bem-estar aos países, ampliando as possibilidades de oferta e demanda em bases mais eficientes. A maior diversidade de fontes e ofertantes pode reforçar a segurança de abastecimento dos países, tornando os sistemas mais resilientes. Enquanto a Europa expande as interconexões com países vizinhos e o resto do mundo, ampliando a diversidade do portfólio e reduzindo a dependência ao gás russo; a América do Sul explora pouco as potencialidades de intercâmbio energético, reduzindo ganhos advindos das diferentes dotações de recursos e do compartilhamento de infraestruturas.

Por outro lado, a independência energética absoluta pode favorecer políticas de precificação ineficientes que não refletem preços relativos dos recursos, comprometendo o desenvolvimento das indústrias de energia e do próprio país. A dotação de recursos não é atalho necessário ou suficiente ao desenvolvimento econômico e social – veja-se o debate de maldição dos recursos naturais ou a doença holandesa como fonte de desindustrialização. Os subsídios aos fósseis – endêmicos em países com abundância de recursos naturais – associados à ausência de mecanismos para internalização das externalidades das emissões de carbono, constituirão a âncora contrária ao desenvolvimento de novas indústrias sustentáveis que já emergem da transição energética em curso.

A diversidade do portfólio de fontes e de ofertantes é a trilha para a segurança energética, buscando precificação e alocação eficiente dos recursos como rota para o desenvolvimento de novas tecnologias. Neste percurso, investimentos em renováveis competitivas abrem caminho para diversificação das matrizes energéticas, deslocando consumo de fósseis e aproveitando recursos locais. Estratos sociais mais vulneráveis devem ser protegidos no processo de transição, garantindo e reconhecendo o acesso à energia como um dos aspectos inegociáveis da segurança energética; mas os países devem evitar distorcer sinais econômicos sob o risco de perderem a bússola em plena busca pelo norte de sua transição.

 

[1] Para discussão mais detalhada das pressões inflacionárias do gás natural, conferir Romeiro, L. D. (2022). Pressões Inflacionárias e a Armadilha da Indexação do Gás Natural no Brasil. Ensaio Energético, 05 de abril, 2022. Disponível em: https://ensaioenergetico.com.br/pressoes-inflacionarias-e-a-armadilha-da-indexacao-do-gas-natural-no-brasil/

*As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional da FGV.

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Autor(es)

  • Diogo Lisbona Romeiro

    Diogo Lisbona Romeiro é economista e pesquisador do Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura da Fundação Getulio Vargas (FGV CERI). Doutor em Economia do Instituto de Economia (IE) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre em Economia pelo IE/UFRJ e graduado em Economia pela PUC-Rio. Foi professor substituto no departamento de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisador do Grupo de Economia da Energia (GEE) do IE/UFRJ e consultor na Prysma E&T Consultores. Tem experiência na área de Economia da Energia, com ênfase em regulação e política energética do setor elétrico e da indústria do gás natural.

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