Usando jabutis para subsidiar os juros da Finep e do BNDES

Tentativas de trocar TLP pela TR em juros do FNDCT e remuneração do FAT por meio de inclusão em medidas provisórias sobre outros temas driblam os ritos dos devidos processos legais, e são danosas ao investimento no Brasil.

Economia
24/05/2023
Sergio Ribeiro da Costa Werlang

Na minha última coluna ao Broadcast, mencionei que o governo do PT está-se utilizando de artimanhas para driblar o devido processo legal.  O ponto essencial é o seguinte: sem maioria para aprovar no Legislativo matérias que são do programa do PT, o governo Lula 3 está-se utilizando de alterações infralegais para mudar leis existentes. Um dos casos que citei foi o de decretos presidenciais para alterar o marco legal do saneamento (Lei 14.026/2020). Observe-se aqui que a Câmara já aprovou um decreto legislativo, que precisa ainda ser votado no Senado, tornando sem efeito os pontos mais polêmicos dos decretos presidenciais. Como esperado, o governo sofreu importante revés, aliás pré-anunciado. 

Neste artigo, volto-me a outro subterfúgio que está sendo utilizado pelo governo Lula 3, para aprovar matérias em que não têm maioria clara no Congresso, em mais um desrespeito ao devido processo legal e à  discussão democrática e transparente de temas em que considera que não tenha a maioria legislativa. Este consiste no uso de “jabutis”, isto é, de introdução de temas que são completamente distintos da matéria a ser votada em MP’s que estão sendo discutidas. Aproveitando-se deste expediente, já foi aprovada a redução dos juros dos recursos do FNDCT (Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), que são repassados para a Finep, trocando-se o indexador de TLP para TR. Isto transformou-se na Lei 14.554, conversão da MP 1139. Note-se que a MP 1139 foi enviada ao Congresso em 27/10/2022 e cuidava do Pronampe. Somente no dia 1º de março foi introduzido o jabuti do FNDCT, trocando indexadores de dívidas para a TR. 

Este caso foi particularmente curioso pois afetou inclusive empréstimos que já estavam vigentes!  Ou seja, quem tomou o empréstimo originalmente e sabia que era indexado à TLP, teve simplesmente um ganho, de forma que o subsídio aos juros não foi útil nem para incentivar a tomada dos empréstimos.  A aprovação na Câmara deu-se em 21/3/2023.  Um assunto que nada tinha a ver com o Pronampe. A discussão sobre este ponto específico não aconteceu, e a mudança foi anunciada somente após a conversão em lei da MP. Uma discussão mais detalhada teria dado atenção às repercussões do artigo jabuti: por que temos que subsidiar empréstimos? Já vimos isto dar errado no passado.  E a aprovação da TLP teve como objetivo pôr fim à prática indiscriminada que havia de bancos públicos subsidiarem empréstimos através de inúmeros “programas” de incentivo. Enfim, o retorno à TLP no FNDCT terá que ficar para uma modificação futura.  Até aqui o “estrago” nas contas públicas foi pequeno, pois abrange somente o FNDCT. 

Não se dando por contente com o assunto, o governo resolveu repetir a dose. Desta vez foi utilizada a MP 1147, que está tramitando na Câmara desde 20/12/2022.  Ela trata do Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos – Perse. Neste caso, o relator da MP foi o deputado José Guimarães, líder do PT na Câmara.  Introduziu agora um texto que altera a remuneração do FAT, que é uma das principais fontes de recursos do BNDES, da TLP para a TR. Ora, aqui o efeito é de magnitude muito maior: potencialmente, poderia fazer com que o BNDES passasse a conceder todos os empréstimos agora à TR e não à TLP, como foi aprovado na Lei 13.483 de 21/9/2017.

Ora, como foi mencionado, esta lei foi fundamental para estancar os subsídios imensos e muito iníquos que eram objeto dos empréstimos do BNDES. Havia várias inconveniências nos subsídios. Primeiro, o montante era desconhecido, pois quanto mais o BNDES emprestava, mais subsídios havia. Segundo, atrapalhava sobremaneira a efetividade da política monetária. Para ver que este é de fato o caso, basta notar que a resposta aos juros da política monetária fica bem menos potente. A elevação de juros para o combate à inflação faz com que as empresas passem a demandar menos crédito, entre outros fatores contracionistas da atividade econômica. Como o BNDES emprestava com juros subsidiados, as empresas que conseguiam recursos baratos não sentiam essa restrição para tomar o empréstimo. 

Desta maneira, o aumento dos juros básicos (Selic) não surtia o mesmo efeito na economia, e tinha que ser maior e mais persistente para combater a inflação.  Terceiro, pior ainda, este custo de manter a Selic maior por mais tempo acabava recaindo sobre aquelas desafortunadas empresas que não conseguiram o crédito subsidiado do BNDES, e em todas as pessoas físicas que têm saldo de empréstimos a pagar.  Beneficiava poucos em detrimento de muitos e tornava a política monetária mais ineficaz, prolongando o ciclo de juros altos necessários para manter a inflação sob controle. Quarto, o efeito final desta política foi muito claro nos governos petistas, especialmente no governo Dilma, que se utilizou ao máximo do BNDES para conceder empréstimos subsidiados. 

A ideia era que estas empresas que receberam o crédito barato fariam o trabalho de multiplicar o efeito, elevando assim o PIB.  Esta última lição aprendemos na marra: causou um enorme desarranjo fiscal, e a economia acabou por entrar recessão, a despeito dos níveis recordes de subsídios concedidos via empréstimos. Ou seja, não funcionou. E não funciona. No momento, a MP 1147 foi enviada para ser apreciada pelo Senado.  Espera-se que o Senado retire este absurdo jabuti do texto. 

O governo Lula 3 está se defrontando com uma realidade que não quer aceitar: tem muita dificuldade em aprovar matérias que alteram os aperfeiçoamentos institucionais que foram feitos pelos governos Temer e Bolsonaro.  Mais ainda, não controla com a facilidade de outrora o parlamento. O devido processo legal tem um rito. As tentativas de driblar este processo só contribuem para dar mais incerteza às decisões daqueles que estão investindo no Brasil. A democracia requer discussão clara e objetiva das diversas visões de mundo. Não é através de uma aprovação rápida e sem discussão, como acontece com o uso de jabutis, que se deve modificar o ordenamento legal. Os abusos acabarão descobertos e serão revertidos, impondo um custo maior para a sociedade. Democracia funcional exige o cumprimento dos devidos processos legais e de seus ritos.

Este artigo foi publicado no Blog do IBRE em 10 de maio de 2023.

*As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional da FGV.

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Autor(es)

  • Sergio Ribeiro da Costa Werlang

    Professor titular da EPGE Escola Brasileira de Economia e Finanças (FGV EPGE). Possui mestrado em Economia Matemática pelo Associação Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (1982) e doutorado em Economia pela Princeton University (1986). Atualmente é diretor geral do Banco Itaú S A.

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