O Conselho Tutelar entra no radar da sociedade
Para além do viés eleitoral, o embate em torno dos Conselhos Tutelares mostra que a infância está no centro do debate cotidiano, mantendo vivo o interesse de quem está politicamente ativo em redes sociais e grupos de whatsapp
Churrasco, caravana religiosa e boca de urna: as eleições para o cargo de conselheiro tutelar de 2019 foram movimentadas como nunca. Apesar de remunerado, o cargo despertava pouca atenção e proporcionava disputas limitadas a poucos grupos de interesse. Neste ano, no entanto, o pleito registrou a maior votação da história em diversos municípios do país e ganhou nova dimensão, sobretudo pela intensa mobilização nas redes sociais.
A mudança se deveu, especialmente, a dois acontecimentos correlacionados: as vagas se tornaram uma demanda prioritária para grupos religiosos e, ao mesmo tempo, despertaram a reação de movimentos progressistas, que passaram a mapear candidatos e divulgá-los.
Na seara religiosa, uma das principais instituições a fomentar tal engajamento foi a Igreja Universal do Reino de Deus, que, dentre outras ações, divulgou em seu site um artigo intitulado "Conselho Tutelar: é nosso dever participar", bem como uma lista de “conselheiros do bem”. De forma semelhante ao que já tradicionalmente ocorre em eleições gerais, essa e outras instituições religiosas convocaram seus fiéis a terem “compromisso com Deus nas urnas”.
A mensagem religiosa não foi o único fator de mobilização. Importante que se perceba que desde 2015 - ano da última eleição para o cargo de conselheiro tutelar - muita coisa mudou. Desde então, ideias e valores conservadores ganharam mais corpo, tornando-se centrais no cenário nacional. Muitas das grandes questões políticas que pautaram a eleição de 2018 estavam voltadas à infância e adolescência, como o “Programa da Escola sem Partido”. No entanto, ainda que sejam agentes eleitorais de convencimento, tais pautas nem sempre são baseadas em fatos verdadeiros - a exemplo do combate ao suposto kit gay.
Para além do viés eleitoral, o embate em torno dos Conselhos Tutelares mostra que a infância está no centro do debate cotidiano, mantendo vivo o interesse de quem está politicamente ativo em redes sociais e grupos de whatsapp. No plano das ações, em episódio recente, o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus, empreendeu grande esforço para impedir que um HQ dos Vingadores, que incluía um beijo entre personagens LGBT, chegasse às mãos de crianças e adolescentes, sob argumento de que o livro trazia conteúdo sexual destinado às crianças e que, por isso, constituía material impróprio para leitura infantojuvenil. Também aqui, o argumento central do Prefeito - rapidamente revertido pelo Judiciário - era a suposta proteção da infância.
O fato é que grupos conservadores, particularmente os evangélicos, parecem ter reconhecido o Conselho Tutelar como uma instituição que pode exercer influência sobre algumas de suas pautas prioritárias e que, portanto, deve ser ocupada. Mais ainda, esses grupos parecem ter concluído que os Conselhos Tutelares se tornaram espaços de entrada na política, uma espécie de primeiro degrau para voos mais altos, como as câmaras de vereadores. Além de serem funções com capilaridade social, possibilitam o exercício de uma agenda assistencialista que se aproxima daquela tipicamente praticada por igrejas.
Grupos progressistas e partidos de esquerda também mobilizaram esforços para a eleição. Houve tanto quem se articulasse de forma reativa, para evitar a ocupação desse espaço por forças políticas e religiosas antagônicas aos seus interesses, como também se percebeu a articulação ativa de valorização desses espaços para a reconstrução de bases políticas perdidas nos últimos anos.
Embora a intensa movimentação política tenha ofuscado a institucionalidade da função, as atribuições dos conselheiros carregam uma parcela de poder difuso, distribuído em pequenas doses para cada um desses milhares de coletivos espalhados pelo país. Dialogam com o poder executivo e judiciário, com crianças e adolescentes, pais ou responsáveis, profissionais da saúde, educação, líderes comunitários e outros com conselheiros. Os conselhos podem fiscalizar entidades governamentais, requisitar serviços públicos, encaminhar notícias sobre violação de direitos das crianças e adolescentes ao Ministério Público, solicitar medidas de perda ou suspensão do pátrio poder, promover ações educativas, dentre outros poderes que complementam funções de estado. Como se vê, conselheiros tutelares articulados podem ser capazes de movimentar agendas políticas e fazer mover instituições de investigação.
Uma leitura rápida do contexto da eleição pode até preocupar. Evidentemente, há risco de desvio de finalidade em ambientes carregados de interesses externos às atribuições do cargo. Mas, superado o calor eleitoral, conselheiros se encontrarão com um enorme campo de atuação suprapartidária que se apresenta no Brasil, a exemplo dos casos de abuso sexual de crianças e adolescentes, que compreende 67,9% dos casos registrados no país (IPEA, 2017), e dos elevados índices de evasão escolar - são 2 milhões de crianças e adolescentes de 4 a 17 anos fora da escola no Brasil (Inep, 2018).
O aumento do interesse pela posição de conselheiro tutelar deve trazer consequências positivas. Isso porque espaços públicos que não mobilizam interessados correm risco de abandono e irrelevância. Os conselhos tutelares entraram no radar da sociedade e isso deve se reverter em fiscalização da atuação dos eleitos e motivação para o trabalho de conselheiros sérios.
*As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional da FGV.