Patrimonialismo institucionalizado
Não seria exagero dizer que o Supremo enfrentou um dos mais difíceis casos das últimas décadas, ao decidir sobre a cobrança da Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL).
Casos difíceis são aqueles em que a norma a ser aplicada não é clara e não há precedentes que possam ajudar o magistrado a encontrar a melhor solução jurídica para um problema concreto. Num sentido mais forte, no entanto, difíceis mesmo são os casos que exigem do interprete um esforço não dogmático para solucionar uma colisão de princípios fundantes da ordem constitucional, que se encontram em tensão na resolução de um caso concreto.
Não seria exagero dizer que o Supremo enfrentou um dos mais difíceis casos das últimas décadas, ao decidir sobre a cobrança da Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL). O problema não foi julgar se o tributo era ou não constitucional. Isso o tribunal já havia feito, há mais de uma década. A questão difícil foi resolver se contribuintes que tinham obtido sentenças judiciais, transitadas em julgado, que os desobrigavam de recolher o referido tributo, poderiam ser obrigados a pagá-lo, em decorrência de decisão posterior do Supremo que declarou o tributo constitucional. Ou seja, poderia o Supremo “relativizar” ou “quebrar” a coisa julgada?
A resposta simples seria: não! A “coisa julgada”, ao lado do “direito adquirido” e do “ato jurídico perfeito”, são princípios assegurados pela própria constituição, com o objetivo de consolidar posições jurídicas passadas.
A questão se complica, porém, quando nos perguntamos se o princípio constitucional do “direito adquirido” protege um “privilégio adquirido”, como se “autêntico direito” fosse. Da mesma forma se uma sentença judicial, ainda que inconstitucional, merece receber a garantia do “trânsito em julgado”? Como lidar com uma sentença judicial, transitada em julgado, que criou um regime jurídico privativo que beneficia apenas um contribuinte, distinto daquele estabelecido pela lei geral, que se aplica sobre todos os demais contribuintes?
A questão é difícil, pois coloca em confronto dois valores fundamentais do estado democrático de direito. De um lado, a exigência de que todos sejam tradados de forma igual perante a lei. De outro, a segurança jurídica, que protege direitos legitimamente adquiridos, por determinação legal, sentença judicial ou contrato, sem o que não faz nenhum sentido agir de acordo com a lei no presente, pois, no futuro, essa conduta pode ser considerada ilegal.
Temos que reconhecer que a ideia de lei geral, que a todos se aplica, jamais foi plenamente incorporada à cultura política brasileira. A capacidade de setores importantes da economia ou do serviço público de esculpir privilégios, em conluio com o legislador ou com o judiciário, não pode ser minimizada. Nossa desigualdade estrutural não é um acidente, mas fruto de um processo incremental de consolidação institucional de privilégios de alguns setores, em detrimento do restante da sociedade.
Se a controvertida decisão do Supremo de relativizar a coisa julgada enfrenta a lógica perversa do patrimonialismo institucional brasileiro; o faz, no entanto, em detrimento da segurança jurídica. Bem escasso, nestas paragens. Importa dizer que esse dilema apenas se colocou ao Supremo porque ele demorou mais de duas décadas para corrigir a decisão do tribunal inferior.
Corrigir injustiças passadas pode, eventualmente, ameaçar o futuro. O fato, porém, é que deixar de corrigir essas injustiças também pode conspirar contra futuro. Creio que a mitigação das consequências dessa decisão, que se irradiarão por todo o sistema jurídico, deveria ser manejada pelo emprego cuidadoso da prerrogativa do Supremo de modular suas decisões. No caso, de determinar um prazo razoável a partir do qual todos, sem exceção, estariam obrigados a recolher o tributo.
*As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional da FGV.