Faroeste caboclo
Explode o número de empresas que canalizam recursos de investidores para compra de terra na Amazônia.
O cenário era lindo: marzão na frente, boteco de praia, pé na areia, cerveja gelada e peixe frito. Intervalode reunião anual da USAID (Agência de Cooperação do Governo Americano) em Salinópolis, Pará, iníciodos anos 2000. Amigos ongueiros conversando sobre mudanças climáticas e floresta.
A COP 6 tinha sido um banho de água fria nas pretensões de incluir florestas nativas no Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL). Ao mesmo tempo, era consenso entre as organizações que representávamos que instrumentos de comando e controle não conseguiriam dar conta, sozinhos, deredução de desmatamento. O uso de instrumentos econômicos se fazia necessário e remunerar florestas pelas suas contribuições ecossistêmicas de regulação do clima se tornava uma possibilidade real, pormeio de créditos de carbono.
Dessa conversa nasce o Observatório do Clima, coalizão de organizações da sociedade civil que entenderam por bem que juntas, em rede, poderiam contribuir mais efetivamente no combate às mudanças climáticas, tendo a proteção de florestas um dos carros chefes de luta. Em 2003, o Instituto Socioambiental (ISA) e o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) lançam, na COP 9, em Milão, proposta de inclusão de desmatamento evitado nas negociações de clima.
Muito a frente dos tempos, essa proposta é gênese do que, muito tempo depois, viria a se chamar REDD+, "Um incentivo ... para recompensar financeiramente países em desenvolvimento por seus resultados de Redução de Emissões de gases de efeito estufa provenientes do Desmatamento e da Degradação florestal, considerando o papel da conservação de estoques de carbono florestal, manejosustentável de florestas e aumento de estoques de carbono florestal".
Vovó já dizia que devemos ter cuidado com nossos sonhos, em especial sonhos sonhados juntos. O queparecia conquista de décadas de luta pela valorização de floresta em pé, pelo aumento do custo oportunidade da atividade de desmatamento parece estar virando pesadelo. No boom tsunâmico do ESG e das iniciativas de compensação de emissões, explode no Brasil o número de empresas que canalizam recursos de investidores para compra de terra na Amazônia para obtenção de créditos de carbono. O mercado voluntário de carbono no Brasil explode. A Faria Lima entra no jogo!
Não demora a vir notícias da ponta. Na espera de 20 anos por esse tal crédito de carbono, populaçõestradicionais e povos indígenas na Amazônia começam a relatar aproximações dessas empresas com certo estranhamento. Direitos e processos parecem estar sendo atropelados em nome de metas dedesempenho prometidas a investidores por alguns atores do mercado. Meios passam a ser fins em simesmos e a nobreza do combate às mudanças climáticas é deixada de lado.
Um exemplo recente vem do município de Portel, no Pará, onde aproximadamente 28% do território localestá coberto por contratos de crédito de carbono firmados entre empresas e comunitários. Esse dado foi divulgado na audiência pública realizada em janeiro deste ano pelo Ministério Público do Estado do Pará (MPPA). Na ocasião, foram compartilhadas diversas denúncias de irregularidades envolvendo esses projetos, o que motivou, poucos dias depois, a Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas) a cancelar 219 inscrições de Cadastro Ambiental Rural (CAR) irregulares ligadas a projetos de carbonona cidade. Dentre os problemas, elencam-se: ausência de consulta prévia e informada de comunidades envolvidas nos projetos, projetos sobrepostos a terras públicas sem devidas autorizações do poder público e assimetria de poder nas negociações entre empresas e comunidades.
Se a má prática não é generalizada - e é possível e provável que haja bons exemplos -, será difícilseparar o seis do meia dúzia e a reputação desse mercado pode ser abalada. É necessário um freio dearrumação e promover a construção participativa de princípios, critérios e indicadores de desempenho,em especial aos processos de consulta e na garantia de direitos. O risco eminente é jogarmos a água, o bebê e a banheira fora, depois de 20 anos de luta. Para o mercado, a solução é capacitar comunidades e indígenas em mudanças climáticas e mercado. Para outros, já passou a hora da Faria Lima entender o que são comunidades, povos indígenas e Amazônia.
*As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional da FGV.