Governo Milei: o que muda nas relações diplomáticas com o Brasil?
A agenda programática da política externa do novo governo é clara: trata-se de um movimento em direção aos Estados Unidos. Do ponto de vista tático, isso possui numerosas implicações.
Javier Milei assumiu o governo da Argentina prometendo aos cidadãos sangue, suor e lágrimas. À crise financeira e fiscal soma-se o aumento vertiginoso, ao longo dos últimos anos, da pobreza e da desigualdade no país. A iminente desvalorização da moeda, a queda nas receitas agrícolas e a ausência de maioria governista no congresso contribuem à complexidade do desafio. Diante desse nó, o novo presidente prometeu passar uma metafórica motosserra no gasto público.
No embalo do programa reformista referendado por ampla maioria do eleitorado, Milei pretende dar uma guinada brusca em política externa. Ele terá mais espaço para implementar mudanças nessa área do que para reestruturar a economia nacional, já que a reorientação não requer a formação de uma maioria legislativa. O resultado afetará em cheio os interesses do Brasil.
A agenda programática da política externa do novo governo é clara: trata-se de um movimento em direção aos Estados Unidos. Do ponto de vista tático, isso possui numerosas implicações. Antes mesmo da posse, o novo governo anunciou que a Argentina não fará parte do grupo BRICS (fundado originalmente por Brasil, Rússia, Índia e China, mas hoje em vias de expansão). De quebra, o governo assinou a entrada argentina à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), entidade intergovernamental com a missão de promover convergência em políticas públicas entre as democracias mais afluentes do mundo. Além disso, é plausível esperar que a Argentina vire o país mais pró-Israel da América Latina, marcando distância da maioria dos países da região, que têm sido críticos a Israel na guerra contra o Hamas e na ocupação da Cisjordânia. Milei também promete postura mais dura em relação ao Irã.
O novo governo enxerga o Brasil como um país que, nos últimos anos, mais atrapalhou do que ajudou a Argentina. Em grande medida, isso é produto da leitura segundo a qual sucessivos governos do Partido dos Trabalhadores (PT) teriam o kirchnerismo a consolidar-se no poder e a tentar nele se manter. Em parte, isso se explica porque Milei entende que o governo Lula faz parte de uma frente internacional que também inclui Bolívia, Nicarágua, Venezuela e Cuba, grupo por ele visto como vanguarda do atraso. Soma-se a isso a leitura, hoje dominante no novo governo argentino, de que Lula se presta a fazer trabalho sujo para Vladimir Putin na Ucrânia, além de estender proteção diplomática à ditadura venezuelana.
A guinada em relação aos Estados Unidos pode vir a aumentar as tensões de Milei com o Brasil na Organização das Nações Unidas (ONU) e no Mercado Comum do Sul (MERCOSUL). Uma prometida aproximação ao Paraguai e ao Uruguai introduzirá uma nova dinâmica para as posições brasileiras no Cone Sul também na área de segurança, e já é possível antever choques mais ou menos públicos à medida que Milei implemente suas promessas de campanha para combater o tráfico de drogas e o crime organizado, cujas raízes estão nas regiões onde Argentina e Brasil fazem fronteira.
Por esses motivos, a Argentina de Milei representa desafio diplomático para o governo Lula. Em que pese o importante trabalho de bastidores que diplomatas profissionais de ambas as partes conduziram nos últimos dias para impedir que a rachadura entre os dois países cresça à véspera da posse de Milei, a ausência do Presidente Lula na cerimônia reflete a turbulência que parece já estar contratada para o relacionamento bilateral.
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