O pacote fiscal divulgado pelo governo no final de novembro do ano passado foi muito mal-recebido pelo mercado, em parte pelo fato de o governo ter incluído nas medidas anunciadas a isenção de imposto de renda até R$ 5 mil. Embora tenha ficado claro que esse benefício só seria concretamente proposto pelo governo em 2025, para valer para 2026, e de que seria compensado pela taxação mínima de renda de 10% para quem ganha mais de R$ 50 mil mensais, a ideia da isenção até R$ 5 mil caiu como uma bomba na percepção do mercado sobre o pacote.
Além disso, como observa Manoel Pires, pesquisador associado do FGV IBRE e coordenador do Centro de Política Fiscal e Orçamento Público do IBRE, a reação do mercado turvou um pouco a análise dos efeitos fiscais do pacote e seus reflexos para análise da política fiscal para 2025. Dessa forma, a discussão do pacote se tornou muito refém da dinâmica do curto prazo, amplificada por toda a incerteza internacional decorrente da eleição norte-americana. O efeito da conjuntura internacional ficou bastante claro depois da posse do presidente Donald Trump, quando o real voltou a se valorizar a partir da retórica política mais amena da guerra comercial e da revisão da política tarifária norte-americana (no momento imediato após a posse).
O pacote efetivo, que foi quase todo aprovado de forma célere ainda em 2024, continha um conjunto bastante complexo de medidas, que foram processadas pelo mercado de forma muito rápida e, em alguns casos, equivocada. Pires nota que o impacto de algumas medidas pode ter sido subestimado.
“Por exemplo, alguns profissionais do mercado e outros analistas atribuíram valor zero a medidas que produziriam algum efeito fiscal”, aponta o economista. Acrescentando que a complexidade do pacote deveria ter sido acompanhada, por parte do governo, de uma melhor comunicação, Pires assinala que “o mercado tende a reagir mal ao que desconhece”.
O economista também destaca que há medidas no pacote fiscal que não são efetivamente corte de gastos, mas que melhoram a gestão orçamentária do governo. Para ele, o mercado tende a subestimar a importância dessas iniciativas na qualidade da política fiscal. Para dar mais relevo a essa questão, Pires classificou as medidas do recente pacote fiscal em três grupos: controle de despesa, melhoria da gestão orçamentária e as que fazem ajustes no arcabouço fiscal.
Assim, além da preocupação com a gestão das expectativas, que é sempre muito importante em matéria de política econômica, é importante analisar as medidas individualmente e seus efeitos para o cumprimento das regras fiscais nos próximos dois anos, período do atual mandato. O distanciamento dos eventos permite olhar para o pacote fiscal de forma um pouco mais neutra, enfatizando o que ele agrega para os desdobramentos do orçamento de 2025, que é a discussão mais relevante.
Em relação ao controle dos gastos, há alguns destaques. O primeiro é a nova regra de reajuste do salário mínimo. Está previsto que anualmente ele será aumentado pelo mesmo percentual do crescimento do PIB de dois anos antes, mas com limites. O crescimento mínimo será de 0,6% e o máximo será o limite efetivo de crescimento real das despesas do arcabouço (que, por sua vez, corresponde a 70% do aumento real da receita líquida ajustada, um conceito criado para expurgar algumas receitas não recorrentes e dar mais estabilidade à aplicação do arcabouço). Por exemplo, se o PIB crescer 3%, mas o reajuste das despesas previsto pelo arcabouço for de 2%, este último percentual irá corresponder ao aumento real do salário mínimo. Se o PIB crescer 2% e o reajuste do arcabouço for de 3%, o mínimo será reajustado em 2%, como no caso anterior.
Outra das medidas de controle de gasto se refere ao abono salarial, com revisão do público beneficiário. Haverá uma redução gradual do teto de recebimento do benefício de renda de dois salários mínimos para 1,5. Como o programa volta-se apenas ao trabalhador formal, o piso de renda na prática é de um salário mínimo. Há também medidas para impor maior controle na concessão de benefícios sociais, com o fortalecimento de cadastros, procedimentos para revisões e regras para aperfeiçoar a porta de saída e diminuir a judicialização. Segundo Pires, é difícil estimar o impacto fiscal dessas medidas relativas a benefícios sociais.
Na área de gestão orçamentária, uma medida importante é o uso dos recursos do Fundeb para financiar matrículas em tempo integral em até 10% do total do Fundeb em 2025, e no mínimo em 4% a partir de 2026. O programa de ensino em tempo integral é financiado atualmente pelo governo federal, e essa medida passará parte da conta para Estados e municípios. Dessa forma, abre-se espaço para o governo federal acomodar o programa Pé-de-Meia no orçamento (hoje está fora, o que é muito criticado por analistas fiscais e pelo TCU, que bloqueou os recursos do programa) e se diminui a margem de crescimento de despesa dos Estados com o repasse do Fundeb.
O crescimento das despesas dos governos subnacionais foi um ponto de atenção da Cartas do IBRE de setembro e dezembro do ano passado. Pires observa que a medida relativa ao Fundeb foi uma saída criativa para um problema importante. A mudança envolveu alteração em uma política pública, o Fundeb, que dificilmente o Congresso aceitaria cortar simplesmente.
Outra medida relevante nesse bloco de gestão orçamentária é a Desvinculação de Recursos da União (DRU) de 30% até 2032, com ampliação para abranger receitas patrimoniais, sendo que os royalties e participações especiais (PE) do setor extrativo-mineral são as mais significativas. Historicamente, a DRU não traz economia, mas flexibiliza a gestão orçamentária e facilita o custeio das despesas.
No entanto, como aponta Pires, e ao contrário do que parte do mercado avaliou, no caso atual haverá, sim, economia de gasto. Esse fato decorre de despesas vinculadas a fundos abastecidos com receitas. Como exemplo, o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) possui, a partir de 2022, obrigatoriedade de execução de seus recursos. Em 2021, por exemplo, dos R$ 7,3 bilhões previstos no Orçamento do FNDCT, apenas R$ 1,3 bilhão foram pagos. Já em 2024, previu-se R$ 12,3 bilhões no orçamento de recursos do FNDCT, dos quais, até novembro, R$ 11,9 bilhões tinham sido empenhados, e R$ 9,5 bilhões pagos. Assim, a DRU permite uma economia fiscal anual de cerca de R$ 3 bilhões, segundo Pires. Ele acrescenta que outros fundos têm sido objeto de ações judiciais, exigindo que os recursos empoçados sejam executados.
Ainda na área de gestão orçamentária, o pesquisador destaca que a PEC do pacote fiscal abre a possibilidade de o governo contingenciar despesas com subsídios, subvenções e benefícios de natureza financeira. Na prática, como ele explica, todos os subsídios orçamentários passam a ser contingenciáveis. O PLOA (Projeto de Lei Orçamentária Anual) de 2025 prevê R$ 26,6 bilhões em subsídios, dos quais o programa Proagro – que tem sido fonte de preocupação da equipe econômica em função do seu crescimento – responde por R$ 5,7 bilhões.
Finalmente, a terceira categoria de medidas do pacote fiscal são ajustes ao novo arcabouço fiscal, com a criação de novos gatilhos para impedir a concessão e renovação de benefícios tributários e limitar o crescimento da despesa com pessoal a 0,6% acima da inflação (até 2030). Esses gatilhos serão acionados se ocorrer uma das duas situações a seguir: (i) se houver déficit primário (a partir de 2025 com efeitos no orçamento de 2027, porque se apura o déficit em 2026 e se aplicam as medidas corretivas no orçamento seguinte, em 2027) e (ii) se a despesa discricionária, a partir do PLOA 2027, apresentar queda nominal na comparação com o realizado no ano anterior em relação ao ano imediatamente antecedente (no caso do PLOA 2027, em 2026 em relação a 2025).
Outro aperfeiçoamento é a proibição de se criar ou prorrogar benefícios cujo crescimento como despesa supere o limite do arcabouço. Isto é, não se pode criar ou prorrogar um benefício da seguridade social cuja regra de formação (incluindo qualquer tipo de vinculação) contemple um crescimento de gasto maior que o do arcabouço. Essa medida, na prática, limita a expansão de novos benefícios ao intervalo entre 0,6% e 2,5% ao ano.
Pires avalia que há de fato melhora na qualidade dos gatilhos, comparado aos do teto de gastos e mesmo os do novo arcabouço antes dessa mudança. Por outro lado, o pesquisador considera que o mecanismo de gatilhos fiscais perdeu credibilidade, porque, ao longo do tempo, eles foram muito mal formulados e nunca foram acionados. “O mercado aqui tem um ponto em ser descrente”, ele diz.
Pires também chama a atenção para as medidas que foram inicialmente anunciadas, mas acabaram ficando de fora do pacote fiscal. O Fundo Constitucional do Distrito Federal (FCDF) continuará sendo corrigido pela variação das receitas federais; os supersalários do funcionalismo federal nos três Poderes se mantêm permitidos enquanto não houver uma lei regrando as exceções; e, no caso do Benefício de Prestação Continuada (BPC), o pacote acabou excluindo mudanças de regras que restringiam a concessão em caso de acúmulo de benefícios, posse de determinados bens e de portadores de doenças leves (neste último caso, para os benefícios para pessoas com deficiências e diagnósticos de transtornos).
“No BPC, se fosse aprovado o que foi inicialmente encaminhado, a economia seria importante – foi uma perda relevante porque as mudanças eram profundas e resolveriam problemas bastante antigos”, comenta Pires.
E houve perda também no que se refere à possibilidade de contingenciar as emendas parlamentares em proporção equivalente ao bloqueio das demais despesas discricionárias, até 15% do total. Atualmente, o governo entende que pode aplicar essa limitação por decisão do STF, mas seria importante ter mais segurança sobre o tema. Pires explica, entretanto, que essa perda em relação às emendas parlamentares não estava na conta do governo sobre a economia do pacote fiscal. O que constava dessa conta era uma medida já aprovada de alguns limites às emendas, previstos na lei complementar 210, aprovada ano passado.
Nas últimas contas do governo, o impacto do pacote de novembro, incluindo medidas de controle fiscal e de gestão orçamentária, é de R$ 69,8 bilhões ao longo de dois anos, 2025 e 2026. R$ 44 bilhões seriam cortes de gastos e R$ 28,4 bilhões seriam melhoria na gestão orçamentária. Essas contas, porém, incluem uma medida que não foi aprovada, a mudança na aposentadoria dos militares (economia de R$ 2 bilhões, sempre ao longo dos dois anos). Já no cálculo de Pires, o impacto do pacote total se reduz para R$ 58,9 bilhões – R$ 32,5 bilhões de redução de despesa e R$ 26,4 bilhões na gestão orçamentária.
A economia em dois anos de vários itens é estimada no mesmo valor pelo governo e pelo pesquisador do IBRE: salário mínimo (R$ 15,3 bilhões), redução de concursos (R$ 2 bilhões), DRU (R$ 7,4 bilhões), mudanças na Lei Aldir Blanc de fomento a cultura e atividades criativas (R$ 3 bilhões), Fundeb (R$ 10,3 bilhões) e Emendas (R$ 14,4 bilhões). A diferença de quase R$ 11 bilhões entre os totais do governo e de Pires provém das estimativas sobre economias com benefícios sociais (R$ 10 bilhões do governo e R$ 4 bilhões de Pires), da já mencionada Previdência dos militares (R$ 2 bilhões e zero, respectivamente), abono salarial (R$ 1,7 bilhão e R$ 800 milhões), e subsídios/Proagro (R$ 3,7 bilhões e R$ 1,7 bilhão).
Em relação aos “outros benefícios sociais”, isto é, o aperto de regras de concessão, a diferença entre a estimativa de R$ 10 bilhões do governo e de R$ 4 bilhões de Pires se deve ao fato de que o efeito das medidas é mais difícil de ser estimado. Finalmente, em relação aos R$ 10,3 bilhões do Fundeb, Pires os considerou na sua conta, mas fez a ressalva de que a medida não terá impacto no resultado primário se houver incorporação do programa Pé-de-Meia ao orçamento.
Em termos do orçamento de 2025, segundo as contas de Pires, haverá impacto do pacote fiscal de R$ 12,9 bilhões de redução de despesas e R$ 12,7 bilhões de ampliação da base contingenciável – no caso deste segundo item, basicamente via medidas de melhoria da gestão orçamentária.
O pesquisador nota que, em 2024, o governo bloqueou e contingenciou R$ 19,3 bilhões de despesas. Considerando esse valor como uma base da qual se pode partir, e acrescentando mais os R$ 12,9 bilhões de cortes de despesa para 2025, chega-se a um espaço fiscal de R$ 32 bilhões no orçamento deste ano. A isso Pires acrescenta R$ 3 bilhões que poderiam ser contingenciados adicionalmente, a partir dos R$ 12,7 bilhões do aumento da base contingenciável mencionado acima. Dessa forma, sai-se de R$ 32 bilhões para algo próximo a R$ 35 bilhões de espaço fiscal.
Por outro lado, nota o pesquisador, o PLOA 2025 enviado ao Congresso, mas não aprovado, já apresenta alguns problemas que precisam ser resolvidos. O primeiro é que o gasto com o Regime Geral de Previdência Social (RGPS) está subestimado em aproximadamente R$ 17 bilhões. Outro problema é que o programa Pé-de-Meia deveria ser incorporado ao orçamento, acrescendo mais R$ 6 bilhões à despesa e o governo ainda deve decidir sobre o auxílio-gás, cujo valor final dependerá dos detalhes do programa. Além disso, o PLOA 2025 foi enviado prevendo um esforço fiscal R$ 26 bilhões com medidas administrativas que já estão sendo tentadas desde o início de 2024, sem sucesso. Tais medidas, portanto, possuem efeito bastante incerto e contêm intersecção com as medidas aprovadas do pacote fiscal de novembro. O valor dessas medidas administrativas talvez deva ser revisado para baixo.
Pires observa que essas lacunas devem ser absorvidas por parte importante dos R$ 35 bilhões do seu cálculo de espaço fiscal no PLOA 2025. Dessa forma, ele continua, os problemas iniciais do orçamento de 2025 parecem cobertos pelos efeitos do pacote de novembro e por um eventual bloqueio, o que é uma boa notícia em termos de política fiscal para o início do ano.
Esses problemas, no entanto, se referem ao cumprimento da meta de gasto do arcabouço, e não tanto do resultado primário (a meta é zero em 2025, com intervalo de 0,25% do PIB para mais e para menos). Em relação ao primário, os riscos fiscais remanescentes se voltam à possibilidade de frustração da receita prevista em um cenário de crescimento econômico esperado menor e do fato de o Congresso não ter aprovado algumas medidas fiscais encaminhadas pelo governo, tais como a elevação da CSLL; e de que a desoneração da folha será revista apenas gradualmente, e não de uma única vez como desejava a equipe econômica.
Em conclusão, Pires aponta que o pacote fiscal de novembro ajuda o governo de forma significativa a cumprir a regra de despesa do arcabouço fiscal. Porém, para cumprir a meta de primário, o governo provavelmente terá de implementar outras medidas de aumento de arrecadação ou de contenção de gastos, em um processo que deve ser muito parecido com o que assistimos no último ano.
Este artigo foi publicado originalmente no Blog do IBRE
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