Dia dos Povos Indígenas: data é comemorada pela primeira vez no Brasil após derrubada do veto
O ano de 2023 é um ano de muitas novidades em relação aos povos indígenas no Brasil. Além da mudança do nome da data comemorativa, é o primeiro ano do Ministério dos Povos Indígenas, uma iniciativa pioneira na história do país.
Após a promulgação da Lei 14.402/22, pela qual foi instituído o dia 19 de abril como o Dia dos Povos Indígenas e revogado o Decreto-Lei nº 5.540/1943, que criou o Dia do Índio no Brasil, o nome da data comemorativa é alterado. Mas o que isso significa?
As celebrações aos povos indígenas no Brasil e no mundo
O Dia do Índio, criado pelo presidente Getúlio Vargas através do Decreto-Lei nº 5.540, de 1943, remetia ao I Congresso Indigenista Interamericano, de 1940, que tinha o propósito de discutir a situação dos povos indígenas após séculos de colonização e construção dos Estados Nacionais no continente americano. A discussão foi feita, sobretudo, a partir do desenvolvimento da Etnologia nas Américas e da compreensão da importância dos povos indígenas para a história do Brasil, bem como a compreensão das políticas públicas indigenistas como meios de defesa e valorização desses povos.
A criação da comemoração, durante o Estado Novo, foi orientada pelas resoluções do Congresso, mas também pela influência e pressão de sertanistas, etnólogos e indigenistas como o Marechal Cândido Rondon, que foi criador do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), que funcionou de 1910 a 1967, sendo substituído pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI), criada em 1968.
O indígena celebrado era uma figura idealizada em um indigenismo de Estado, que defendia a ideia de que caberia ao Estado Nacional proteger e exaltar a memória dos povos fundadores do povo brasileiro: o branco europeu; o indígena e o negro africano escravizado. A figura criada nessa narrativa dos romances indianistas era generalizada em suas especificidades culturais: pacífica e serviçal do branco europeu. Era também o indígena que estava condenado a desaparecer diante da avalanche civilizatória, como previa catastroficamente Darcy Ribeiro.
O professor e escritor indígena Daniel Munduruku critica o “Dia do Índio” afirmando que se trata de uma ideia folclórica e preconceituosa que reproduz estereótipos, principalmente nas escolas. Ele defende o uso da palavra “indígena”, que quer dizer originário, e diz mais sobre esses povos do que o termo generalizante “índio”, que vem caindo em desuso por ser considerado pejorativo.
Para o antropólogo João Pacheco de Oliveira a forma como a história do indígena brasileiro é abordada o transforma em uma ilha que não se comunica com o todo, uma vez que não é possível entender as estratégias e performances indígenas ignorando as interações que mantêm com os contextos reais em que vivem e sua inserção no Estado Nação, bem como suas redes e fluxos transnacionais. A antropóloga Berta Ribeiro afirmava que a cultura indígena não é estática e deve ser vivificada como patrimônio humano. Somente dessa forma será dada a todos os povos, inclusive os indígenas, a faculdade de eleger e reelaborar suas histórias, memórias e bens culturais.
No âmbito internacional, as comemorações e reflexões sobre os povos indígenas se concentram no 9 de agosto. A data foi instituída em 1995 pela Organização das Nações Unidas (ONU) e tem o objetivo de promover a reflexão sobre as condições de existência dos povos indígenas no mundo. A data foi escolhida em referência à I Reunião do Grupo de Trabalho das Nações Unidas sobre Populações Indígenas, realizada em Genebra em 1982. A reunião foi feita com lideranças nativas de todo o mundo, discutindo pautas dos direitos humanos e proteção aos povos indígenas, que exigiam respeito às suas culturas, linguagens, tradições e costumes. A partir disso, em 2007, a Assembleia Geral da ONU aprovou a Declaração dos Povos Indígenas, que estabelece padrões mínimos de sobrevivência, que incluem o direito à autodeterminação, ao autogoverno e a não sofrer assimilação cultural forçada, evitando assim a destruição de suas culturas. Esses padrões garantem também o direito de participação dos povos indígenas nas instituições do Estado.
Brasil, 2023: o que esperar desse abril indígena?
O ano de 2023 é um ano de muitas novidades em relação aos povos indígenas no Brasil. Além da mudança do nome da data comemorativa, é o primeiro ano do Ministério dos Povos Indígenas, uma iniciativa pioneira na história do país. Foi a primeira vez que um governo democraticamente eleito instituiu um ministério formado por indígenas para tratar de seus interesses, ainda mais tendo uma mulher indígena à frente: a ministra Sonia Guajajara. Também é a primeira vez que uma mulher indígena é nomeada presidente da FUNAI. Aliás, é importante frisar que a atual presidente da FUNAI é a responsável pelo Projeto de Lei nº 5.466/19 que propôs a mudança do nome do “Dia do Índio” para Dia dos Povos Indígenas, e que gerou a Lei 14.402/22, a Deputada Federal Joenia Wapichana (REDE/RR).
O abril indígena é lembrado pela celebração dos nossos povos originários e por ser o mês no qual acontece, desde 2004, o Acampamento Terra Livre (ATL). O ATL é um evento anual de mobilização dos povos indígenas brasileiros em torno de seus direitos constitucionais. Nele são discutidas as violações dos direitos indígenas e reivindicado junto ao Estado brasileiro o cumprimento das leis de proteção aos indígenas.
De 24 a 28 de abril de 2023 serão pautas: a calamidade sanitária enfrentada pelo povo Yanomami, execuções de indígenas no extremo sul da Bahia, a retomada das demarcações de terras indígenas e o combate ao discurso de ódio alimentado contra os povos indígenas, dentre outras. Com a criação do Ministério dos Povos Indígenas há uma esperança maior de que as demandas serão ouvidas e atendidas.
Em um ano de tantas inaugurações em relação aos povos indígenas, o FGV CPDOC, Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, a Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas, recebe pela primeira vez dois alunos indígenas do povo Apinajé, do Tocantins, do curso de mestrado profissional em Bens Culturais e Projetos Sociais. Andressa Irembete, professora bilíngue, e Emílio Dias, presidente da Associação do Povo Apinajé, estão colaborando no desenvolvimento do projeto “Patrimônio documental indígena: trabalho colaborativo entre o FGV CPDOC e o Povo Apinajé”.
Esse projeto é um desdobramento da doação feita ao FGV CPDOC, em 2022 do arquivo pessoal do antropólogo Roberto DaMatta. Esse arquivo inclui cerca de 3.000 documentos audiovisuais sobre sua pesquisa realizada entre os Apinajé, na década de 1960, que resultou em sua tese de doutorado posteriormente publicada como livro: Um mundo dividido: a estrutura social dos índios Apinayé. No dia 3 abril deste ano, os alunos Apinajé protagonizaram um emocionante reencontro com DaMatta na Casa Acervo (FGV CPDOC), no qual puderam conhecer o rico acervo doado, reconhecendo rostos amigos e familiares, bem como rituais e eventos do Povo Apinajé.
Diante de tantas novidades, dizer que é a primeira vez que o Brasil comemorará o Dia dos Povos Indígenas significa dizer que podemos esperar não só um abril, mas o ano inteiro de novas possibilidades de reflexão e luta política e de memória dos povos indígenas brasileiros.
*As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional da FGV.