Justiça não coíbe ilegalidade para policiais em domicílios e mantém 94% das condenações por tráfico
Todos os processos pesquisados tiveram origem em abordagens policiais, 60% delas motivadas por “denúncias anônimas”, 31% por “patrulhamento rotineiro” nas ruas e 9% por “denúncias de transeuntes e terceiros".
Estudo revela que mais de 90% das entradas de agentes em residências aconteceram sem outras diligências prévias ou mandado judicial, o que fere a Constituição. Palavra dos policiais continua sendo verdade sem contestação nos tribunais. Foi o que concluiu um estudo do Núcleo de Justiça Racial e Direito (NJRD) da FGV Direito SP, depois de analisar 1.837 acórdãos (decisões de segunda instância), de tribunais de sete Estados brasileiros (BA, SP, RJ, PR, SE, GO e PA), nas cinco regiões do país, entre 2000 e 2021.
"A casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial", é o que diz o artigo 5º, inciso XI, da Constituição Federal. Para a justiça brasileira, no entanto, as exceções previstas no texto constitucional viraram regra.
Todos os processos pesquisados tiveram origem em abordagens policiais, 60% delas motivadas por “denúncias anônimas”, 31% por “patrulhamento rotineiro” nas ruas e 9% por “denúncias de transeuntes e terceiros” (que podem ser tanto populares em vias públicas quanto vizinhos dos acusados).
“Segundo a narrativa ‘oficial’ dos autos, dada pelos policiais, existe um padrão: a denúncia anônima aponta que há tráfico num determinado local. Os policiais vão até lá - em geral, a casa da pessoa denunciada - e pedem autorização para entrar, o que é sempre permitido por algum morador, que pode ser a mãe, a irmã, a esposa ou o próprio acusado. É a chamada “entrada franqueada”, explica a pesquisadora e advogada Amanda Pimentel, do NJRD.
Amanda resume a principal questão jurídica nesses casos: “Embora a denúncia anônima seja um meio legítimo para abrir uma investigação, ela não pode sozinha embasar uma ação policial, principalmente quando o que está em jogo é uma regra constitucional como a inviolabilidade do lar. A denúncia deve ser acompanhada de diligências que busquem comprovar a veracidade do seu conteúdo. Além disso, a autorização de entrada na residência não pode ser obtida mediante coação ou violência e mesmo quando o consentimento for obtido por meios lícitos, entendemos que a mera suspeita não pode autorizar a entrada na casa, mas deve estar amparada em razões suficientes que indiquem que o que ocorre no interior da residência é um crime”.
A segunda situação em que mais ocorrem abordagens é durante os patrulhamentos de rotina, quando policiais identificam as chamadas “atitudes suspeitas”. Segundo as narrativas dos agentes, embora esse tipo de abordagem inicie nas ruas, ela termina nas casas dos suspeitos, quando, em geral, o acusado espontaneamente confessa possuir mais drogas em sua residência.
“É, no mínimo, estranho que alguém diga, por vontade própria, durante uma abordagem policial, que cometeu um crime, ou seja, que possui mais objetos que fortaleceriam a caracterização de flagrante delito em sua casa. O fluxo entre rua e casa realizado pelos policiais para determinar o flagrante põe em xeque a narrativa da confissão espontânea, especialmente quando estão diante de alegações das defesas dos acusados de coação e violência cometidas pelos agentes”, comenta Amanda Pimentel.
“Copia e cola”
Nos processos analisados, a defesa solicitou três tipos de nulidades: 97% por violação de domicílio dos réus, 2% por violência, coação ou tortura na abordagem policial e 1% por implantação de provas ou flagrante forjado. Em relação ao mérito, 69% dos defensores pedem absolvição pela fragilidade das provas e 31% por desclassificação do crime de tráfico para o de uso de drogas. As provas nos quase 2 mil processos são majoritariamente testemunhais, com policiais representando 69% dos depoentes, contra 31% de civis - isto é, mais que o dobro das testemunhas são agentes de segurança pública.
Mesmo com provas fracas e/ou obtidas mediante violação de uma das principais garantias constitucionais, os juízes rejeitaram 98% das nulidades apontadas pelos defensores. As condenações são mantidas em segunda instância em 94% dos casos.
De acordo com a pesquisadora, o que mais chama atenção nos achados é a padronização. Não só aquela observada nas narrativas dos policiais nos autos, mas também nas decisões judiciais. “Os magistrados costumam justificar suas sentenças argumentando que as suspeitas dos policiais, sejam elas motivadas por denúncias anônimas ou pelos patrulhamentos - isto é, por ‘fundada suspeita’ -, são suficientes para autorizar a entrada no domicílio dos réus”, analisa.
O estudo destaca que os policiais não citam outras diligências e dificilmente mencionam elementos objetivos que indiquem algum ilícito por parte dos abordados. As situações mais comuns narradas pelos agentes como conteúdo para a “fundada suspeita” durante os patrulhamentos são: a vida pregressa dos acusados, o fato de estarem próximos a “pontos de tráfico de drogas”, tentativas de fuga e até “nervosismo”.
Segundo os pesquisadores, mesmo que as narrativas dos policiais fossem 96% à prova de falhas - como se poderia depreender das condenações mantidas em segundo grau -, os acórdãos contrariariam uma série de importantes julgados em tribunais superiores sobre o tema. É o caso do HC 598051 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que define que a entrada em residência para investigar a ocorrência de crime sem mandado judicial deve ser precedida de um registro em áudio e vídeo da autorização do morador, feito pelos policiais. De 40 casos analisados manualmente pelo NJRD, isto aconteceu em apenas um.
Já no julgamento do Recurso Especial 603616, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Gilmar Mendes defendeu que deveria ser criado um novo entendimento a respeito das buscas pessoais no sentido de garantir o princípio de inviolabilidade do domicílio. “A proteção contra a busca arbitrária exige que a diligência seja avaliada com base no que se sabia antes de sua realização, não depois”, diz um trecho do voto do ministro.
Conheça os casos em que tribunais tiveram entendimentos diferentes daquele amplamente adotado pela Justiça brasileira diante de provas obtidas por entrada em domicílio sem mandado judicial:
HC 89853, do STJ - decidiu pela ilegalidade da entrada de policiais em residências sem diligências prévias.
HCs 364359 e 512418, do STJ - decidiu que é imprescindível investigação policial prévia acerca da veracidade de denúncia anônima.
HC 598051, do STJ - decidiu que, quando não houver mandado judicial, os policiais devem registrar em áudio e vídeo a autorização do morador para entrar no domicílio.
Caso Fernandez Prieto e Tumbeiro vs. Argentina, julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos - condenou a Argentina por abordagem policial discriminatória, determinando que a “fundada suspeita” se baseie em elementos objetivos e verificáveis.
HC 158580 - decidiu pela ilicitude da prova obtida a partir da noção vaga de “atitude suspeita”
Racismo e "fundada suspeita”
Segundo dados do Departamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), em 2022, 28,7% da população carcerária masculina e 55,4% da feminina cumpriam medidas de restrição ou privação de liberdade por alguma das diferentes modalidades de tráfico de drogas. Em relação ao quesito raça/cor, o dado mais recente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) mostra que 67,5% das pessoas presas são negras, enquanto 29% são brancas.
Para o NJRD, a polícia é quem acaba filtrando e estabelecendo quem será preso por tráfico, mas a justiça tem papel fundamental nessa dinâmica quando ela simplesmente aceita a chamada “verdade policial”. “Isso fica nítido na aceitação do conceito vazio de ‘fundada suspeita’ como justificativa massiva para abordagens policiais, incluindo aquelas sofridas em casa. A garantia constitucional da inviolabilidade do lar acaba relativizada pela cor do morador e local da residência”, observa a pesquisadora Julia Drummond.
Em maio de 2022, o STJ considerou ilegais as buscas pessoais sem mandado, motivadas por atitude suspeita. A decisão da 6ª turma da corte trancou uma ação penal contra um acusado de tráfico de drogas, com quem inclusive foram encontradas substâncias ilícitas. A sentença explicitou que deve haver indícios objetivos de cometimento de crime antes da abordagem e não depois.
Assista ao vídeo Asilo inviolável? com os principais resultados da pesquisa.
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