Câmeras corporais nos uniformes policiais: o caso de São Paulo

Desde o início do Programa Olho Vivo, os indicadores de uso da força policial têm apresentado uma queda significativa. Nas unidades que receberam as câmeras, o número total de mortes decorrentes de intervenção policial caiu 80% em comparação aos 12 meses anteriores.

Políticas Públicas
28/02/2023
Joana Monteiro
Eduardo Fagundes
Julia Guerra

O avanço tecnológico na captura e armazenamento de imagens tem permitido que forças policiais adotem abordagens inovadoras para aperfeiçoar sua atuação e aumentar a confiança dos cidadãos no trabalho das polícias. Em especial, a implantação de câmeras corporais nos uniformes policiais tem sido adotada em países como Estados Unidos e Inglaterra pelo menos desde 2005 e ganhou força recentemente após episódios de excesso de violência policial em diversos países do mundo. No Brasil, a Polícia Militar do Estado de São Paulo introduziu as câmeras nas suas unidades em junho de 2021 por meio do Programa Olho Vivo, parte de um amplo esforço de redução da letalidade policial [1].

Qual o impacto da introdução das câmeras corporais em São Paulo?

Desde o início do Programa Olho Vivo, os indicadores de uso da força policial têm apresentado uma queda significativa. Nas unidades que receberam as câmeras, o número total de mortes decorrentes de intervenção policial caiu 80% em comparação aos 12 meses anteriores[2]. Apesar de expressivos, esses valores não permitem concluir o tamanho do impacto sobre uso da força.

Para avaliar os benefícios de qualquer política pública de modo preciso, é importante ter uma boa estimativa de qual seria o contrafactual. Isto é, o cenário hipotético em que todos os outros determinantes da letalidade policial evoluíssem como de fato evoluíram, mas as câmeras não tivessem sido utilizadas. Em muitos casos, não é possível estimar esse cenário alternativo pela ausência de um grupo de comparação adequado. No entanto, a distribuição faseada das câmeras corporais nas unidades policiais paulistas permitiu que as unidades que não receberam as câmeras representassem um bom grupo de referência para tal trajetória contrafactual das unidades que as receberam.

No artigo Avaliação do impacto do uso de câmeras corporais pela Polícia Militar do Estado de São Paulo, utilizamos técnicas econométricas para avaliar de maneira rigorosa o efeito da introdução das câmeras sobre o uso da força policial. Os resultados apontam que as câmeras reduziram, em média, 0,22 mortes decorrentes de intervenção policial por bimestre nas unidades tratadas em comparação às unidades que não receberam as câmeras. Isso representa uma redução de 57% em relação à média desse indicador antes do início do Programa Olho Vivo. Ou seja, uma queda menor do que os 80% da comparação sem a aplicação de técnicas estatísticas robustas, mas ainda assim uma redução expressiva. Além das mortes, as lesões decorrentes de intervenção policial também apresentaram uma queda expressiva, de 61%.

Por que as câmeras reduzem o uso da força?

Há ao menos três canais de impacto nos quais as câmeras podem gerar redução de episódios de uso da força. Primero, é possível que as câmeras corporais tornassem os policiais receosos de realizar abordagens para não incorrerem em erros que gerem punições diminuindo sua proatividade e esforço. No entanto, a evolução do número de flagrantes não se alterou de maneira diferencial nas unidades que receberam as câmeras em comparação às demais. Mais ainda, crimes como roubos, furtos e homicídios também não se alteraram por causa da introdução das câmeras. Não há evidências, portanto, que exista um custo dessa política pública em termos de aumento da criminalidade para o caso paulista.

Um segundo canal em potencial para a diminuição da violência policial diz respeito a uma mudança de comportamento por parte dos civis e suspeitos ao interagirem com policiais. É possível que, ao saberem que estão sendo filmados, indivíduos se tornem menos hostis com policiais, evitando a necessidade de abordagens com uso da força pelos agentes de segurança. Utilizando dados de resistência e desacato, encontramos evidências limitadas para esse tipo de canal. A introdução das câmeras corporais não causou uma redução significativa nesse tipo de ocorrência.

Por fim, a existência de mecanismos de supervisão pode gerar uma mudança de comportamento policial que adeque suas ações aos protocolos da corporação. Esse é um canal particularmente difícil de testar uma vez que é necessário utilizar microdados sobre os vídeos assistidos pela estrutura de supervisão da polícia. Porém, uma evidência que corrobora essa hipótese é o aumento de notificações de ocorrência observado nos registros internos da polícia. As câmeras induziram um aumento de 12% nos registros totais e em particular na notificação de ocorrências que são tipicamente subnotificadas, como violência doméstica cujos registros aumentaram em 102%. Assim, esse aumento do uso de instrumentos institucionais de notificação de ocorrências sugere que o uso de câmeras afeta a mudança no comportamento policial por esse canal.

De fato, há experiências em que o uso das câmeras sem respaldo institucional não gerou mudanças de comportamento uma vez que os próprios policiais com frequência não ligavam o dispositivo quando necessário[3]. No caso de São Paulo, ao contrário, o uso das câmeras é fruto de pelo menos oito anos de maturação institucional, que se iniciou com a prospecção da tecnologia, produções acadêmicas sobre o tema e intercâmbio com outras polícias, sendo finalmente implementada em 2021 após a realização de pilotos. Esse processo contribuiu para que a polícia adotasse protocolos de adoção das câmeras em acordo com boas práticas internacionais, como a obrigação de manter a câmera ligada durante todo o turno e estratégias de supervisão ativa.

Os resultados sugerem, portanto, que as câmeras corporais têm efeito na redução da violência policial, principalmente por meio da adequação do comportamento das forças de segurança aos protocolos e instrumentos institucionais já existentes. Não obstante, as câmeras não são capazes de, isoladamente, solucionar os problemas na área de segurança pública, inclusive os excessos de violência e desvios de conduta por parte dos policiais. O seu efeito sobre comportamento policial e adequação aos protocolos internos é potencializado pela introdução de sistemas de supervisão e existência de mecanismos de prestação de contas.


[1] Houve ainda iniciativas em menor escala em Santa Catarina e Rondônia em 2019.

[3] Magaloni, B., Melo, V., Robles, G., & Empinotti, G. (2019). How body-worn cameras affect the use of gunshots, stop-and searches and other forms of police behavior: A Randomized Control Trial in Rio de Janeiro.

*As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional da FGV.

Autor(es)

  • Joana Monteiro

    Joana Monteiro é coordenadora do Centro de Ciência Aplicada à Segurança Pública (FGV CCAS), professora na Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (FGV EBAPE) e na Escola de Administração de Empresas de São Paulo (FGV EAESP) e Lemann Visiting Public Policy Fellow na Universidade de Columbia. Atuou como Diretora-Presidente do Instituto de Segurança Pública (ISP) e coordenadora do Centro de Pesquisa do Ministério Público do Rio de Janeiro (CENPE/MPRJ). Doutora e mestre em Economia pela PUC-Rio. 

     

  • Eduardo Fagundes

    Pesquisador do Centro de Ciência Aplicada à Segurança Pública (FGV CCAS) da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (FGV EBAPE). Foi pesquisador no Centro de Pesquisa do MPRJ, onde trabalhou com análise de dados sobre grupos criminais armados e controle da atividade policial. Possui experiência com tratamento, organização e análise de dados geoespaciais e textuais. Graduado e mestre em Economia pela PUC-Rio, possui interesses em desenvolvimento econômico, economia da educação e economia do crime.

  • Julia Guerra

    Atualmente é gerente executiva do Centro de Ciência Aplicada à Segurança Pública (FGV CCAS) onde conduz pesquisas nas linhas de segurança pública e justiça e desenha, em parceria com o setor público, iniciativas para promover o uso de evidências por gestores públicos. Possui mestrado em economia pela UFRJ e graduação na mesma área pela USP. 

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