Por que devemos falar sobre a valorização de Comunidades e Povos Tradicionais no Brasil?
Nos dias 13 e 20 de novembro ocorreu a edição 2022 do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio). O exame, criado em 1998 para avaliar a qualidade do ensino médio no Brasil, atualmente é porta de entrada para diversas universidades públicas e privadas no país, e para algumas universidades estrangeiras.
Segundo dados do INEP, 2,3 milhões de candidatos fizeram as provas este ano. O tema da redação: “Desafios para a valorização de comunidades e povos tradicionais no Brasil”, levanta um debate de extrema importância na atualidade, que envolve aspectos sobre territorialidade, sustentabilidade e direitos humanos.
É preciso ter em mente a legislação e diferenciar o que são povos tradicionais e povos originários
O tema chama atenção pela complexidade de sua abordagem. Os muitos caminhos possíveis para tratar dos desafios da valorização dos Povos e Comunidades Tradicionais (PCT’s) no Brasil, podem levar os participantes do ENEM, e a sociedade de forma geral, a confundir informações por falta de repertório sociocultural.
Saber das legislações, conseguir diferenciar Povos Originários de Povos e Comunidades Tradicionais e conhecer os principais conflitos vivenciados por esses grupos, é o principal desafio para o fomento da pauta.
O principal equívoco em relação à temática é restringir a discussão apenas aos povos indígenas. Apesar de estarem listados entre os Povos e Comunidades Tradicionais, os povos indígenas são também Povos Originários brasileiros. Isso quer dizer que são Povos e Comunidades Tradicionais que já estavam em território brasileiro muito antes de sua “descoberta”. Segundo o Censo 2022, atualmente, há 896.900 indígenas no Brasil, pertencentes a 305 etnias ou povos e falantes de 274 línguas.
A definição de Povos e Comunidades Tradicionais, segundo o artigo 3 do Decreto n. 6.040 de 2007, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, é:
Povos e Comunidades Tradicionais são grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.
Além dos povos indígenas, são listados 27 povos e comunidades tradicionais no Brasil: Andirobeiras; Apanhadores de Sempre-vivas; Caatingueiros; Catadores de Mangaba; Quilombolas, Extrativistas, Ribeirinhos, Caiçaras, Ciganos, Povos de terreiros, Cipozeiros, Castanheiras; Faxinalenses; Fundo e Fecho de Pasto; Geraizeiros; Ilhéus; Isqueiros; Morroquianos; Pantaneiros; Pescadores Artesanais; Piaçaveiros; Pomeranos; Quebradeiras de Coco Babaçu; Retireiros; Seringueiros; Vazanteiros; e Veredeiros.
O artigo 215 da Constituição de 1988 assegura a proteção às manifestações culturais indígenas, afro-brasileiras e dos Povos e Comunidades Tradicionais:
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
§ 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afrobrasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.
2º A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais.
3º A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público que conduzem à:
- I defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro;
- II produção, promoção e difusão de bens culturais;
- III formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões;
- IV democratização do acesso aos bens de cultura;
- V valorização da diversidade étnica e regional.
Há ainda, dentre a legislação pertinente, a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, assinada em 2007, determinado seu
cumprimento pelo Decreto n. 6.177 de agosto de 2007, que destaca a importância dos conhecimentos tradicionais e sua contribuição para o desenvolvimento sustentável, devendo ser assegurada sua proteção e promoção. Temos ainda o Estatuto da Igualdade Racial, instituído pela Lei 12.288 de julho de 2010, destinado a garantir a população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação por critérios étnico-raciais.
Os mecanismos legislativos são essenciais para que os direitos estabelecidos a essas pessoas sejam compreendidos como bases de promoção de políticas públicas em prol das comunidades tradicionais.
A relevância do tema para a discussão contemporânea
Ter em mente quais são os PCT’s e conhecer a legislação que os protege contribui para que a sociedade de uma forma geral, e não apenas os estudantes que realizaram o ENEM, possa refletir sobre o desafio de valorizar esses povos, as causas da dificuldade dessa valorização no nosso país e as consequências dessa não valorização, não só para os povos em questão, mas para a sociedade de uma forma geral.
Comunidades tradicionais historicamente ocupam territórios ameaçados pelo setor agropecuário, pelo garimpo, pelo desmatamento ou pela exploração desenfreada da fauna, flora e recursos hídricos. Esses povos, ao contrário, contribuem para a preservação da conservação desses territórios e manutenção da biodiversidade.
A abordagem da temática da valorização dos Povos e Comunidades Tradicionais nos permite também refletir sobre a inserção dessas pessoas nos espaços de produção de conhecimento, como as universidades, atuando na produção científica sobre a relação humana com os recursos naturais; refletir sobre a violência e o esquecimento aos quais são relegados; e sobre a representação política desses povos, a fim de ampliar o olhar para múltiplas formas de vida e vivências.
Não é possível valorizar, proteger e divulgar aquilo que não conhecemos. Portanto, discutir sobre a valorização dos Povos e Comunidades Tradicionais é fomentar a preservação da memória do nosso povo. Como disse o líder jamaicano Marcus Garvey: “Um povo sem conhecimento da sua história, origem e cultura é como uma árvore sem raízes”.