A equiparação de injúria racial e racismo: avanços e reconhecimento na legislação antirracista
Para leigos, pode soar estranho sequer debater se injúria racial (ofender a honra subjetiva, pessoal de outrem por razões de raça/cor) seria ou não crime de racismo. No entanto, para juristas e no dia a dia do sistema de justiça não se trata de uma diferença trivial.
No dia 16 de janeiro de 2023, durante a histórica nomeação de Anielle Franco para o cargo de Ministra da Igualdade Racial, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei 14.532 de 2023, que tipifica como crime de racismo a injúria racial, aumentando a pena cominada para o crime de um a três anos para dois a cinco anos de reclusão. Na prática, a lei retirou o tipo penal de injúria racial do catálogo dos crimes contra a honra do Código Penal, deslocando-a para a Lei 7.716/1989, que define os crimes resultantes do preconceito de raça ou de cor.
Para leigos, pode soar estranho sequer debater se injúria racial (ofender a honra subjetiva, pessoal de outrem por razões de raça/cor) seria ou não crime de racismo. No entanto, para juristas e no dia a dia do sistema de justiça não se trata de uma diferença trivial. Há dois efeitos concretos a partir da nova lei. De um lado, um efeito simbólico, sinalizar para a sociedade que ofender a honra pessoal de outrem por razões de raça/cor é uma das formas mais comuns e, não por isso menos perversas, de manifestação do racismo. Pesquisas acadêmicas há tempos relevam que uma das manifestações do racismo na sociedade brasileira é o insulto racial contra pessoas negras, ora reconhecido em lei como racismo. De outro, um efeito no trabalho da lei, uma vez que ao incluir injúria racial entre os crimes de racismo a nova lei a equipara com os mandamentos constitucionais de inafiançabilidade e imprescritibilidade.
Vale ressaltar que antes da promulgação desta lei, em outubro de 2021, no julgamento do Habeas Corpus (HC) 154248, o Supremo Tribunal Federal já havia entendido que injúria racial configurava espécie do crime de racismo e, portanto, era imprescritível. Na ocasião, o Supremo negou o Habeas Corpus impetrado pela defesa de uma mulher condenada por injúria racial, que pedia a extinção da punibilidade do crime pelo decurso do tempo (ou tecnicamente, transcurso do prazo prescricional), ao considerar o delito de injúria racial equivalente ao de racismo e reconhecer a sua imprescritibilidade.
Antes da equiparação, no entanto, ofensas verbais de cunho racial eram constantemente enquadradas como crime de injúria racial e quase nunca como crime de racismo, em função de um entendimento que se formou nos tribunais brasileiros que criava diferenciação entre ofensas dirigidas a uma pessoa individualmente (injúria) e a uma coletividade (racismo).
Este critério de diferenciação - muito criticado por ativistas do movimento negro - foi possibilitado por uma alteração legislativa realizada pela Lei 9.459/1997 que incluiu as ofensas de cunho racial como qualificadora do crime de injúria, previsto no artigo 140 do Código Penal. Inicialmente, o objetivo dessa alteração era punir de modo mais efetivo as ofensas raciais, que no decorrer das ações penais que tramitavam a época eram classificadas majoritariamente como crime de injúria simples, apesar do seu conteúdo apresentar um nítido caráter discriminatório por razões de raça/cor (Matos, 2017).
A principal consequência da diferenciação entre os tipos penais acima mencionados foi que o crime de injúria racial se tornou um crime racial menos grave, com pena menor e com a possibilidade do acusado responder em liberdade mediante pagamento de fiança, podendo ainda ter a punibilidade criminal extinta, diferente do crime de racismo, que é imprescritível e inafiançável.
Na prática, isto fez com que os crimes raciais fossem registrados e processados maioritariamente como injúria racial e não como racismo. Segundo recente pesquisa do Núcleo de Justiça Racial e Direito da Fundação Getúlio Vargas (2022) sobre crimes raciais, 84% das denúncias são registradas como injúria racial em São Paulo, o que comprova que a maior parte dos casos não são tratados de modo mais severo pelo sistema de justiça, conforme previsto pela legislação sobre crimes resultantes de preconceito racial.
Ao inserir um dispositivo que prevê penalização específica para esses casos, a lei inova ao demonstrar que ofensas racistas não podem ser consideradas como piadas (ou racismo recreativo nos termos do Adilson Moreira) desprovidas de intencionalidade, mas antes devem ser reconhecidas como crime de racismo e tratadas na forma prevista pela lei. Segundo Sueli Carneiro (1996), importante intelectual negra e ativista do movimento negro brasileiro, a desclassificação do crime de racismo para o de injúria racial nos revela o pouco interesse com que a discriminação racial é tratada no Brasil e demonstra que sempre houve por parte dos profissionais do direito uma negação da relevância de se punir o racismo.
Desse modo, a equiparação da injúria racial ao crime de racismo vem ao encontro de críticas realizadas por ativistas do movimento negro que apontavam que a desclassificação do crime gerava impunidade, além de ignorar a importância do combate ao racismo no país, em completo desacordo com as demandas de reconhecimento das violências sofridas por grupos historicamente marginalizados da sociedade brasileira.
Ademais, a nova lei prevê ainda penas maiores para casos de racismo que ocorram em contexto ou com intuito de recreação e diversão. Este ponto também configura um importante avanço trazido pela nova lei, na medida em que um dos principais obstáculos para o reconhecimento dos crimes raciais por parte dos magistrados era a alegada “falta de intenção” de ofender alguém, em especial em contextos de “acalorada discussão” ou quando considerava-se que o acusado estava apenas “brincando” ao proferir os insultos (Machado et al, 2016).
Em que pese a nova lei, o caminho para equidade racial é longo. O sistema de justiça tem sido historicamente relutante em ver os fundamentos raciais de um determinado crime, mesmo quando evidentes. Discutir de que forma uma jurisprudência mais bem comprometida com justiça racial pode ser desenvolvida no país onde um jovem negro é morto a cada 23 minutos é agenda urgente entre estudiosos do direito: a nova lei abre as portas para este tema, não o encerra.
*As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional da FGV.