IA, regulação e a nova ordem global
Uma nova ordem global está se formando, impulsionada pelas transformações trazidas pelas tecnologias digitais. Em um artigo recente, a analista política Anne Applebaum destaca como algoritmos controlados por grandes empresas americanas e chinesas determinam as mensagens e imagens vistas por bilhões de pessoas, enquanto fluxos financeiros podem se mover por meio de contas secretas e esquemas de criptomoedas, influenciando anonimamente o debate nas redes sociais com o objetivo de moldar a opinião pública.
A posse de Trump evidenciou uma explícita aliança entre as big techs e a nova presidência dos EUA, um evento sem precedentes na história do país e, possivelmente, nas democracias ocidentais. Hoje, algumas dessas gigantes da tecnologia, com apoio da Casa Branca, buscam limitar a influência das instituições públicas na Europa e outros países e impor seus termos, resistindo à qualquer regulamentação.
As mudanças já anunciadas pela Meta e X abrem as portas das redes sociais para que grupos político-partidários, ou qualquer um, espalhem mentiras absurdas e incendiárias sobre qualquer pessoa, física ou jurídica. Essas falsidades podem ser impulsionadas por meio de publicidade online direcionada. Não há ainda regra que possa impedir a disseminação da desinformação antes que os eleitores a vejam.
Essas são questões cruciais levantadas pelo uso aberto e agressivo das plataformas sociais, que podem espalhar desinformação e promover políticos extremistas em vários países. A integridade de eleições - e a possibilidade de um debate livre da interferência de desinformação nas redes - está sendo desafiada pelo TikTok, plataforma chinesa, e pelas subsidiárias da Meta, que incluem Facebook, Instagram e WhatsApp. Não podemos esquecer que as redes sociais globais se tornaram a praça pública digital, que podem, por meio de seus algoritmos, amplificar a visão política de seus proprietários.
Na prática, ninguém sabe quais regras as plataformas realmente seguem. Sem transparência dos algoritmos, monitorar o que acontece online, especialmente durante eleições, é quase impossível. Quando os danos já foram causados e a votação termina, é tarde demais. Em muitos países, as regras buscam conter o extremismo antidemocrático, que já abalou diversas democracias.
Sem transparência dos algoritmos, monitorar o que ocorre online, em especial em eleições, é quase impossível, mas, na nova ordem digital global, surge uma questão central: como nações com diferentes realidades e níveis de desenvolvimento podem proteger seus valores no ambiente digital global? Para as democracias, esse desafio envolve garantir a integridade do debate público e das eleições. Já para regimes autoritários, a questão se coloca de forma mais direta: como usar o poder digital para se manter no controle?
As mudanças nas políticas de moderação de conteúdo das Big Techs, impulsionadas por interesses econômicos e políticos, são alarmantes. As justificativas protocolares são restrição à liberdade de expressão e inibição da capacidade de inovação. Elas ocorrem em um momento de intensa instabilidade geopolítica, no qual atores nacionais e estrangeiros transformam a informação em arma, potencializadas por práticas exploratórias de dados e pelo avanço das novas ferramentas de IA.
O inesperado lançamento do DeepSeek por uma empresa chinesa, logo após o início do governo Trump, mexeu com o cenário global, criando um ambiente de incerteza e deslocamento geopolítico estratégico. Nesse contexto caótico, países emergentes de vários matizes políticos buscam a construção de um novo neomultilateralismo digital, concebido como uma estratégia para proteger suas instituições e a soberania dos ecossistemas nacionais de informação em todo o mundo.
Por que neomultilaterismo? Porque os EUA, país que foi decisivo para a constituição da arquitetura internacional após a Segunda Guerra Mundial, que é a base das Nações Unidas, está se autoexcluindo da proposta multilateral. O novo governo americano está determinado a estabelecer sua própria ordem internacional e, portanto, está se subtraindo de esforços multilaterais nos moldes perseguidos nas últimas sete décadas - como seu afastamento do Acordo de Paris, da OMS e da OMC sinalizam. Não se trata mais de American First, mas sim de América Only.
No contexto do campo democrático, é interessante explorar em quais áreas Brasil, França, Reino Unido, Alemanha, Canadá, Austrália, Índia e África do Sul, por exemplo. poderiam colaborar como parceiros, mesmo diante das respectivas heterogeneidades políticas e econômicas. A estratégia de contraponto ao poder das big techs passa por várias possibilidades, regulatórias e econômicas. A proteção da democracia, o combate à desinformação e a segurança das eleições surgem como prioridades para a cooperação internacional.
No campo econômico do neomultilateralismo digital, ganha força a ideia de desenvolver IA nos moldes chineses, sem as barreiras antes consideradas intransponíveis para países em desenvolvimento, como altos custos de energia, capital humano e investimentos. Talvez a entrada nesse mercado seja mais acessível do que se imaginava. Como contraponto, a estratégia inclui acordos bilaterais e multilaterais sobre governança digital, políticas públicas, cooperação tecnológica e científica e mecanismos regulatórios para reduzir a desinformação e garantir transparência na operação das plataformas digitais globais.
O neomultilateralismo digital cria oportunidades para o Brasil avançar em debates ainda pouco explorados, como o potencial dessa transformação digital para acelerar o cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Como lidar com a revolução no mundo laboral em um momento em que as relações de trabalho estão em crise tanto nos países desenvolvidos como emergentes e pobres?
Como o Brasil pode se situar proativamente na construção da nova ordem digital global juntamente com outros países que valorizam suas instituições em oposição às regras de algoritmos impostos por empresas estrangeiras do porte de Estados? O jogo está aberto. Cabe ao Brasil escolher suas apostas.
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