Os impactos da confiabilidade para o transporte

Observar com atenção a confiabilidade na dinâmica dos transportes é aperfeiçoar as formas de melhoria da qualidade e da segurança nas movimentações da sociedade

Políticas Públicas
25/09/2024
Marcelo Sucena

A Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT, na NBR-5462, define Confiabilidade com a capacidade de um item desempenhar uma função requerida sob condições especificadas, durante um dado intervalo de tempo. Dessa forma, está associada à condição de operação de um ativo, por exemplo, de transporte.

Entretanto, quando certo item carece de retirada de operação para sanar algum entrave ao desempenho da função planejada, direcionar-se-á para a área de manutenção. Nesse caso, insere-se outro conceito fundamental: a mantenabilidade. A mesma Norma descreve-a como a capacidade de um item ser mantido ou recolocado em condições de executar suas funções requeridas, sob condições de uso especificadas, quando a manutenção é executada sob condições determinadas e mediante procedimentos e meios prescritos.

Dessa forma, é possível perceber que para o ativo de transporte estar disponível para produzir viagens é necessária a conjugação de ambas as atuações: a confiabilidade e a mantenabilidade. A NBR-5462 descreve a Disponibilidade como a capacidade de um item estar em condições de executar uma certa função em um dado instante ou durante um intervalo de tempo determinado, levando-se em conta os aspectos combinados de sua confiabilidade, mantenabilidade e suporte de manutenção, supondo que os recursos externos requeridos estejam assegurados.

Em transportes, o atendimento à demanda com qualidade está fortemente associado à disponibilidade dos ativos para o movimento de pessoas e cargas. Como tal, trata-se também da bifurcação operacional entre a confiabilidade e a mantenabilidade, ou seja, está sustentada em decisões do processo de produção do transporte, tais como a condição de acessibilidade projetada, a periodicidade dos movimentos em certo espaço de tempo, o tempo de viagem planejado, o nível de lotação admissível, entre outros aspectos, denotando que há forte vínculo entre a qualidade do serviço prestado pelo transporte.

Na literatura a abordagem da confiabilidade é ampla, como se percebe, por exemplo, pelas anotações de Fogliatto e Ribeiro (2009), que vinculam a confiabilidade com a ausência de falhas; Elsayed (2021), que considera a análise da confiabilidade para produtos ou sistemas quanto à probabilidade de desempenhar o seu propósito, em um determinado período e sob condições determinadas, estabelecida por parâmetros bem definidos em relação ao item focado; Kardec e Nascif (2009), que observam a interferência da área de manutenção que, segundo eles, deve contribuir para o atendimento do programa de produção, maximizando a confiabilidade e a disponibilidade, otimizando os recursos disponíveis com qualidade e segurança; e Santos (2017), que trata sobre a necessidade da Engenharia da Confiabilidade na aplicação de métodos de manutenção de acordo com as características e propriedades do modo de falhas de um determinado equipamento, componente ou sistema.

Especificamente no âmbito do transporte, vale observar a diferença entre a confiabilidade observada pelo usuário do serviço, que pode ser tratada como a qualidade percebida do sistema, e a confiabilidade do sistema do ponto de vista da sua produção, dada pela disponibilidade dos ativos para a operação.

Por isso, Gubarevych et.al (2023) observam, pela ótica do sistema, que uma das muitas formas de melhorar a confiabilidade do transporte é assegurar que todos os fatores técnicos estabelecidos no planejamento estejam satisfeitos, principalmente por intermédio de estratégias de manutenção pois, segundo Tkhoruk et.al (2019), os parâmetros técnicos de confiabilidade são um dos principais indicadores de qualidade e eficiência de operação dos sistemas de transporte. Martyushev et.al (2023) observam que existem fatores que podem permitir aferir a confiabilidade do transporte, que são o tempo livre de falhas, a taxa de falhas dos sistemas e o tempo de manutenção, que impactam na disponibilidade do transporte.

Na perspectiva do usuário, a confiabilidade, de acordo com Ferraz e Torres (2004), está relacionada ao grau de certeza dos usuários de que o ativo móvel estará disponível no período estipulado e que possibilitará chegar ao destino dentro do horário previsto, sem variabilidade temporal exacerbada. Pode-se ainda considerar que a confiabilidade engloba tanto a pontualidade (grau de cumprimento dos horários), como também a efetividade na realização da programação operacional (relação entre as viagens programadas e as realizadas). Nesse sentido, Polus (1978) define confiabilidade em transporte por ônibus como a capacidade de fornecer um serviço consistente ao longo de um determinado período. Aqui se inserem os aspectos da disponibilidade no início da viagem e ao longo dela, que podem ser afetados por variáveis externas ao sistema, tais como as características da via, a disponibilidade de pessoal adequado para controle do serviço durante a produção e ao final do serviço prestado, além das condições de trânsito. Kazaura (2023) simplifica e sistematiza que a confiabilidade dos serviços de transportes está apoiada em três pilares: a conveniência, que incorpora a acessibilidade, a inteligência do negócio e o aspecto operacional; a eficiência, que engloba a frequência e os tempos de espera e entre viagens; e a qualidade do serviço, que trata da segurança física do foco do transporte (passageiro ou carga), a segurança dos ativos disponíveis para o movimento e o conforto, que trata especificamente de seres vivos.

Para determinar a confiabilidade de um sistema de transportes é necessário definir parâmetros claros e o método de análise. Na ótica do passageiro, Freitas et.al (2015) definem a confiabilidade como a capacidade do sistema em cumprir as viagens programadas, avaliada pela relação entre as viagens realizadas e a planejada; e pelo grau de confiança no tempo de viagem, que é aferido pelo inverso do desvio padrão calculado para a linha/rota em questão. Esse método também é utilizado por Duarte (2016) ao estudar o comportamento do transporte coletivo de Joinville/SC/Brasil, demonstrando a previsibilidade que o serviço pode ter para o usuário, fator relevante na fidelização da demanda. Vatanabe (2023), ao definir a confiabilidade como a capacidade do sistema para realizar todas as suas viagens programadas no horário correto, que vincula os dois aspectos abordados anteriormente, realizou uma pesquisa de campo para verificar a pontualidade das partidas e assim calcular a confiabilidade do sistema para o usuário a partir da amostra das viagens corretas. Mendonça (2016), partindo do mesmo princípio de confirmar a pontualidade das partidas como fator de confiabilidade, usou uma ferramenta de simulação (WPLEX) para analisar os tempos de viagem dos veículos. Dado que os veículos realizam viagens em sequência, na qual o tempo de atraso em uma viagem pode influenciar a partida da próxima, como que em efeito cascata, utiliza-se a distribuição lognormal dos períodos de viagem para se obter a duração da maior probabilidade em cada faixa horária. Essa informação é utilizada no software de simulação, a fim de planejar, de forma mais eficiente, a disposição dos veículos e as saídas dos terminais.

No aspecto da mantenabilidade é necessário salientar a partes do sistema em operação, pois cada parte do elemento constituinte pode impactar de formas diferentes o todo. Gubarevych et.al (2023), ao analisarem a confiabilidade dos transportes ferroviários, destacaram a confiabilidade de suas peças mais estruturais, que mais impactavam na operação, para tanto, dividiram a confiabilidade entre as peças recuperáveis e as peças não recuperáveis. No primeiro caso, o tempo de reparo é tomado pela relação entre os estados de operação em cinco fases (S0 - estado de operação completa; S1 - estado de operacionalidade incompleta, na qual o motor começa a apresentar diminuição da eficiência; S2 - operacionalidade crítica, na qual o rolamento apresenta vibrações desde o início da operação; S4 - estado pré-avaria e S5 - fora de serviço). Dessa forma é possível analisar estatisticamente a probabilidade do sistema de permanecer ativo em cada um desses estados, com base na velocidade de transição entre cada uma das fases. Obtendo-se o tempo em que o motor atinge cada uma das fases, é possível prever falhas e planejar a manutenção mais adequada, impedindo a remoção completa do ativo por avaria e aumentando a confiabilidade da operação.

Martyushev et. al (2023) dissertam que para aumentar a confiabilidade de um sistema é necessário diminuir o tempo de reparo, que pode ser atendido aumentando-se a capacidade do ativo de fornecer diagnósticos. É o aspecto da manutenção preditiva. Ao ampliar a testabilidade dos ativos - no caso desse estudo, os equipamentos elétricos de um trólebus - é possível obter dados mais robustos a respeito do funcionamento das peças e da ocorrência das falhas, que são usados para calcular, a partir de uma função probabilística, o grau de confiabilidade dos equipamentos e programar de forma mais eficiente os reparos.

Por fim, para ressaltar aspectos práticos dos métodos para aumento da confiabilidade dos transportes, Szkoda et.al (2021) estudaram, durante 15 meses, um sistema ferroviário com locomotivas a diesel, para acumularem os registros das falhas: quantas ocorreram, em quais peças da locomotiva e o tempo de reparo. A partir desses dados e utilizando o software Weibull++ para análise dos componentes, foi possível coletarem os tempos médios para falha e reparo de cada componente, viabilizando um planejamento de manutenções preventivas que ampliaram o tempo operacional de cada composição.

Como se pode perceber ao final dessa breve análise, a disponibilidade de componentes de sistemas de transporte está intimamente ligada ao planejamento, execução e controle, todos nos aspectos operacionais como de manutenção. Diante de tal constatação, vale ainda acrescentar as responsabilidades dos operadores de transportes e dos órgãos de regulação e de fiscalização, para com a qualidade e a segurança do serviço de transporte e para a organização da mobilidade urbana.

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*As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional da FGV.

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Autor(es)

  • Marcelo Sucena

    Pesquisador da FGV Transportes. Doutor em Engenharia de Transportes pela COPPE/UFRJ. Mestre em Engenharia de Transportes pelo Instituto Militar de Engenharia – IME.

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