Mulheres indígenas e a reconstrução da política indigenista no Brasil

As mulheres sempre estiveram presentes nas organizações e espaços de luta do movimento indígena, porém nos últimos anos sua atuação tem se transformado e mulheres de diversos povos passaram a assumir posição de liderança.

Ciências Sociais
07/02/2023
Kena Chaves
Tainá Holanda Caldeira Baptista

Pela primeira vez, desde que foi instituído no Brasil o Dia Nacional de Luta dos Povos Indígenas, em 2008, a data será comemorada por mulheres indígenas na liderança da política indigenista do país. O simbólico dia 07 de fevereiro, em que morreu Sepé Tiarajú, liderança guarani que atuou na revolta indígena contra portugueses e espanhóis em 1756, insere na memória coletiva a história de luta dos povos, que resistem há mais de 520 anos em defesa do direito ao território. Em 2023, a data será marcada por grande expectativa do movimento indígena para efetivação de direitos fomentada pela presença de mulheres indígenas nas linhas de frente da reconstrução de políticas e ressignificação da relação dos povos com o Estado.

Sônia Guajarara, que esteve à frente da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), foi eleita deputada em 2022 e assumiu o cargo de Ministra dos Povos Indígenas, ministério conquistado pelos povos e que promete ser conduzido em relação estreita com o movimento indígena. Joênia Wapichana, primeira deputada indígena do país eleita por Roraima em 2018, deixou o Congresso Nacional e assumiu o cargo de presidenta da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), órgão que será, pela primeira vez na história do Brasil, conduzido por uma mulher indígena. Também neste início de ano, foi inaugurada no Congresso a simbólica Bancada do Cocar, liderada por Célia Xakriabá, deputada recém-empossada, que apresenta como compromisso a defesa dos direitos dos povos dentro do legislativo nacional.

As mulheres sempre estiveram presentes nas organizações e espaços de luta do movimento indígena, porém nos últimos anos sua atuação tem se transformado e mulheres de diversos povos passaram a assumir posição de liderança. Como demonstra o levantamento do Instituto Socioambiental (ISA), cresceu o número de organizações de mulheres indígenas, alcançando, em 2020, o total de 92 organizações mapeadas, a maior parte delas criadas a partir dos anos 2000. Ainda que tenham estado em todas as edições do Acampamento Terra Livre, organizado pelo movimento indígena desde 2004 em Brasília, apenas em 2016 as mulheres realizaram sua a primeira plenária neste espaço. Em 2019, foi inaugurada a Marcha Nacional das Mulheres Indígenas, mais um espaço de organização do movimento, convertido em importante ação para denúncia e enfrentamento das pressões anti-indígenas que ganhavam espaço no Congresso e no executivo nacional. Desde então, a marcha acontece a cada 2 anos em Brasília, organizada com apoio da ANMIGA (Associação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade) e da APIB, e traz como principal bandeira a luta pelo território e defesa das demarcações.

A atuação das mulheres no movimento indígena, no Congresso e na gestão da política indigenista representa um transbordamento de sua atuação no cotidiano dos territórios. Ainda que generalizações não sejam possíveis diante da diversidade presente dentre as 305 etnias indígenas no Brasil, relatos etnográficos[1] apontam que em muitos povos são as mulheres as principais responsáveis pelo cuidado cotidiano com crianças, preparo e manutenção de roçados, produção de farinha, perpetuação da cultura e dos idiomas, além da presença cada vez mais intensa em ações de enfrentamento de invasores, vigilância e monitoramento dos territórios.

Em pesquisa realizada pelo Centro de Estudos em Sustentabilidade da FGV (FGVces) sobre as ações de Monitoramento Territorial Independente (MTI)  conduzidas por comunidades e organizações de base na Amazônia, relatos colhidos indicam que as mulheres indígenas são importantes defensoras da sociobiodiversidade local, da valorização das práticas tradicionais de manejo sustentável, assim como do envolvimento de crianças e jovens em todas as etapas das ações de monitoramento, que entendem como um espaço de educação tradicional, formação de lideranças e fortalecimento dos laços comunitários. O protagonismo das mulheres em iniciativas de MTI tem se mostrado, também, um caminho para o fortalecimento da participação e liderança política que já exercem em espaços sociopolíticos dentro e fora de suas comunidades, por meio da qual são ampliadas suas capacidades de alavancar pautas de interesse e agendas de mobilização, com forte atenção para a defesa dos direitos territoriais dos povos.

A luta pelo território é um eixo estruturador do movimento indígena no Brasil, e coloca as demarcações e o reconhecimento dos direitos territoriais como  pauta  comum, capaz de aproximar diferentes povos. Ainda que garantido na Constituição, o direito indígena ao território sofre ataques cotidianos, seja no Congresso Nacional por pressões de bancadas para flexibilização de direitos, seja pela paralisação das demarcações e pelo desmonte das políticas de proteção territorial, o que intensifica a presença de invasores, garimpeiros, madeireiros e grileiros em territórios tradicionalmente ocupados em todo o país, e em especial na Amazônia brasileira.

As consequências desses últimos quatro anos de fragilização de direitos e da política indigenista são alarmantes, e um exemplo triste é o dramático caso de emergência do Povo Yanomami, com elevado número de mortes de crianças e idosos, e casos de violência sexual contra adolescentes e mulheres, decorrentes dos impactos da presença garimpeira nos territórios do povo. Outro caso grave é o garimpo que atinge territórios do Povo Munduruku, na Bacia do Tapajós, e provoca degradação florestal e contaminação das águas e peixes, levando ao adoecimento do povo. Resultados de estudos da Fiocruz realizados em aldeias Munduruku em 2022 apontam que seis em cada 10 pessoas testadas foram diagnosticadas com presença de mercúrio em níveis acima de limites seguros.

Tanto nas ações em defesa dos territórios, como naquelas em defesa da saúde dos povos, as mulheres estão na linha de frente e mostram que ambas as pautas são inseparáveis no cotidiano das lutas. Na pesquisa conduzida pelo FGVces, depoimentos recolhidos também apontam para a conexão entre saúde física e mental, bem-estar e proteção dos territórios. Não raro, o engajamento das mulheres nas iniciativas independentes de proteção decorre do modo como violências físicas e psicológicas, resultantes de pressões, ameaças e invasões dirigidas contra os territórios, impactam suas vidas de modo particular e com grande intensidade, seja por meio da violação de seus corpos e de lugares sagrados ou da sobrecarga de trabalho relacionado ao cuidado com a saúde de suas famílias e comunidades.

Este cenário evidencia que a emergência sanitária em territórios indígenas não pode ser enfrentada apenas com o fortalecimento das políticas de saúde, sendo essa uma ação urgente e extremamente necessária. Mais do que isso, é fundamental que suas causas sejam superadas e prevenidas, por meio da articulação entre as políticas de saúde e de proteção territorial. Nesse sentido, demarcar territórios, retirar invasores, impedir novas invasões e combater a realização de atividades ilegais nos territórios indígenas é tarefa urgente de reparação histórica, e assim deve ser encarada pelo Estado brasileiro. A recente presença das mulheres indígenas na condução da política indigenista sinaliza para uma nova era de possibilidades, com forte aposta na articulação de políticas para avançar na proteção dos territórios e na efetivação de direitos já garantidos pela Constituição.


[1] Lasmar,  Cristiane (1998). Mulheres  Indígenas:  representações. Revista Estudos Feministas ; Sacchi, Angela. (2006) União, luta, liberdade e resistência: as organizações de mulheres indígenas da Amazônia brasileira. UFPE; Sampaio, Paula Faustino (2021) Mulheres Indígenas: entre colonialismos e resistência de longa duração. Brasília: Editora Cancioneira;

*As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional da FGV.

Autor(es)

  • Kena Chaves

    Integra o Programa de Desenvolvimento Local do FGVces como pesquisadora desde 2014. Foi parte da equipe de campo do projeto Indicadores de Belo Monte (2014- 2015), compõe a equipe de pesquisadores da iniciativa “Grandes Obras na Amazônia: aprendizados e diretrizes” (2016 – 2018), e atualmente é pesquisadora do projeto “Governança de territórios impactados por grandes obras na Amazônia”. Doutoranda em Geografia pela Universidade Estadual Paulista (UNESP/Rio Claro), mestre pela mesma universidade, especialista em gestão pública e sociedade (UNICAMP/ UFT / SENAES) e bacharel em geografia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

  • Tainá Holanda Caldeira Baptista

    Pesquisadora do Centro de Estudos em Sustentabilidade (FGVces) da Escola de Administração de Empresas de São Paulo (FGV EAESP). Mestranda em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP), na linha de pesquisa sobe Território, Agricultura e Sociedade. Também pela USP, formou-se como bacharel e licenciada em Ciências Sociais.

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