A nova política de privacidade do Whatsapp e a importância de comunicação transparente
A recepção negativa das novas políticas de privacidade do Whatsapp revelou que os usuários do aplicativo se importam, e muito, com a defesa de sua privacidade. Revelou, também, a importância de uma estratégia de comunicação transparente, que deixe claras as mudanças no tratamento de dados pessoais, mesmo quando elas não são drásticas. O sucesso dos aplicativos de comunicação depende da confiança de seus usuários.
No início de janeiro de 2021, os usuários do WhatsApp foram surpreendidos por uma notificação: caso não aderissem aos novos termos de uso e política de privacidade do aplicativo até 8 de fevereiro, perderiam acesso às suas contas. O comunicado repercutiu mal entre usuários e autoridades, que demandaram mais informações sobre as mudanças, sobre sua conformidade com legislações de proteção de dados pessoais e sobre seus impactos na privacidade. A empresa decidiu por postergar a mudança para reconsiderar sua estratégia de divulgação.
Duas mudanças ensejaram a reação: primeiro, o Whatsapp passaria a compartilhar metadados dos usuários (como endereços de IP, data e hora do envio de mensagens, dispositivos utilizados, força do sinal e níveis de bateria) com outras empresas do grupo Facebook, como a rede social homônima e o Instagram; segundo, funcionalidades do Facebook e do WhatsApp Business voltadas a atividades comerciais e a transações financeiras seriam conectadas. O conteúdo das conversas não seria compartilhado, já que é protegido por criptografia ponta-a-ponta, que faz com que as mensagens passem pelo servidor da empresa em forma codificada.
Na realidade, as alterações propostas não representaram uma mudança profunda na forma pela qual o aplicativo lida com privacidade, mas sim uma continuidade da crescente integração entre ele e o Facebook, em curso desde 2014, quando o WhatsApp foi adquirido pela gigante da tecnologia.
O aplicativo passou a compartilhar metadados de usuários com empresas do grupo Facebook já em 2016, para “melhorar as (...) experiências [de usuários] com seus serviços, sugerindo conteúdo (...), e mostrar ofertas e anúncios relevantes”. Aqueles que já faziam uso do aplicativo à época puderam exercer a opção de rejeitar (opt out) o compartilhamento, mas os usuários que passaram a utilizar o WhatsApp desde então tiveram seus dados, por padrão, compartilhados. Considerando que o aplicativo, que à época possuía 600 milhões de usuários em nível global, já tem uma base instalada de 2 bilhões, isso significa que a maioria esmagadora de seus usuários já tem seus metadados compartilhados.
A reação negativa, portanto, parece não ter sido motivada pelo efetivo teor das mudanças: a grande maioria dos usuários de WhatsApp sempre teve seus dados compartilhados com o Facebook, e aqueles que optaram por não os compartilhar em 2016 continuam desobrigados sob a nova política. Tampouco há indícios de que a nova política contrarie as regras da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei nº 13.709/18).
Uma explicação melhor parece ser que a mudança não foi acompanhada da devida transparência, e que muitos usuários não estavam cientes, até agora, de que a aquisição do WhatsApp pelo Facebook resultou, com o passar dos anos, numa mudança notável nas funcionalidades do aplicativo e na forma como os dados são tratados: como o WhatsApp se pretende ser não apenas um aplicativo de mensagens, mas também de compras e pagamentos, é esperado que ele exija cada vez mais dados de consumidores para cumprir essas funções.
Mesmo assim, uma estratégia de divulgação que deixasse mais clara para os usuários a dimensão de quais metadados são compartilhados com o Facebook, ou como eles são empregados, teria sido útil para aplacar os ânimos. Da mesma forma, oferecer, ao menos de início, algum tipo de opt out aos usuários atuais do WhatsApp, como se fez em 2016, teria sido uma solução mais incremental e menos impopular – ainda que o aplicativo não tenha a obrigação legal de agir dessa forma.
Fato é que o deslize na comunicação do Whatsapp não ficou sem consequência. Milhões de usuários migraram para outros aplicativos de troca de mensagens em busca da promessa de maior privacidade. Em especial, foram beneficiados pela mais recente debandada o Telegram e o Signal.
O Telegram já foi o destino favorito de usuários brasileiros durante os bloqueios judiciais do Whatsapp entre 2015 e 2016. Chegou a ser bloqueado em países como o Irã por se recusar a fornecer dados de usuários às autoridades, o que contribuiu para sua imagem de defensor dos usuários. Apesar disso, ao contrário do Whatsapp, o aplicativo não utiliza criptografia ponta-a-ponta em todos os canais de conversa, o que cria o risco de vazamentos.
O Signal promete utilizar a criptografia forte e não armazenar metadados. Essa postura o levou a entrar em conflito com empresas parceiras e a ser banido de países como o Egito. Além disso, por ser desenvolvido e mantido por uma fundação, o aplicativo é financiado por doações, o que garante sua independência, mas pode limitar sua capacidade de sustentar uma grande base de usuários.
É claro que essas migrações, mesmo que significativas, não foram capazes de derrubar a hegemonia do Whatsapp. O aplicativo, hoje, sustenta pequenas, médias e grandes empresas e ainda está na esmagadora maioria dos celulares de brasileiros. Nenhum dos concorrentes promete as funções comerciais que tornam o Whatsapp tão útil ao pequeno empreendedor, talvez porque seria necessário, para tal, abdicar da postura irredutível quanto a coleta de metadados.
O caso, porém, reitera a importância de uma comunicação transparente e clara quando há mudanças, ainda que pequenas, no tratamento dos dados dos usuários. A falta de clareza pode gerar reações intensas. Mesmo que o Whatsapp ofereça algumas opções de privacidade mais sofisticadas que as do Telegram, ou esteja fundado em uma infraestrutura mais estável que a do Signal, ou sirva como ferramenta comercial, as falhas em sua comunicação são mais que suficientes para que milhões sintam que sua privacidade está ameaçada e abandonem o aplicativo. Hoje, é impossível dissociar o sucesso desses serviços da confiança de seus usuários de que sua privacidade está segura.
*As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional da FGV.
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