Nova renegociação da dívida estadual aponta mudança do regime fiscal
Atual etapa de renegociação da dívida estadual parece desequilibrada: juros estão sendo reduzidos bem mais do que o razoável, já que a União capta a aproximadamente IPCA+6% e o custo da dívida estadual deve tender para IPCA+0%
O Senado aprovou em meados de agosto o projeto de lei complementar (PLP) 121/2024, de renegociação das dívidas dos Estados com o governo federal. Segundo Manoel Pires, coordenador do Centro de Política Fiscal e Orçamento Público do FGV IBRE, essa é a rodada de renegociação da dívida estadual mais abrangente desde a lei 9.496, de 1997, durante o primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso. O PLP 121/2024 agora vai tramitar na Câmara dos Deputados.
As dívidas abrangidas pelo PLP 121/2024 são aquelas que foram objeto da lei 9.496 e de outras renegociações subsequentes: Lei 8.723, do governo Itamar; as leis complementares (LC) 159 e 178, no âmbito da crise fiscal de 2015; e a MP 2192-70, que renegocia algumas dívidas antigas com bancos públicos. Pires, estima que o total a ser renegociado deve atingir R$ 748 bilhões.
O PLP 121/2024 estabelece que as dívidas sejam reestruturadas em 30 anos, ou em 360 parcelas. Há um complexo quadro de possibilidade de correção dessas dívidas. Os Estados podem ter a dívida corrigida por IPCA + 0% em três situações. Na primeira, se anteciparem 20% da dívida, disponibilizarem 1% da parcela devida para um Fundo de Equalização Federativa (que vai distribuir recursos entre os Estados) e mais 1% para investimentos específicos. A segunda é antecipar somente 10% da dívida, mas direcionar 1,5% para o Fundo de Equalização Federativa e 1% para investimentos específicos. Na terceira situação, o Estado não faz nenhuma amortização inicial, mas aplica 2% no Fundo de Equalização Federativa e 2% em investimentos específicos.
Já para pagar IPCA+1%, há outras combinações: antecipar 20% da dívida e contribuir apenas com 1% para o fundo; antecipar 10% da dívida, contribuir com 1,5% para o fundo e 0,5% para novos investimentos; e não amortizar, mas aplicar 2% no fundo e 1% para investimentos. Na opção de pagar IPCA +2%, é preciso antecipar 10% das dívidas e disponibilizar 1% para o fundo; ou não antecipar nada e aplicar 2% no fundo e 0,5% para investimentos específicos.
Em resumo, quanto menos o Estado antecipa de dívida, aplica no Fundo de Equalização Federativa e realiza os investimentos específicos, maior é o custo da dívida.
Na visão de Pires, a tendência é de que todos os Estados optem pelas opções de IPCA+0%. Para ele, uma preferência generalizada deve recair na alternativa em que não se amortiza dívida, e 2% do valor da dívida é aplicado em investimentos específicos e 2% aportado ao fundo de equalização. Já a opção que envolve a quitação antecipada de 20% das dívidas é considerada difícil de ser adotada pelos Estados, na visão do pesquisador, diante da alternativa de fazer mais investimentos específicos – isto é, “aumentar os gastos no próprio Estado”.
Pires nota também que os investimentos específicos são “quase tudo”, o que dá bastante margem de manobra para os Estados: educação profissional técnica de nível médio, infraestrutura de universalização de ensino infantil, educação em tempo integral, infraestrutura de saneamento, habitação e transportes, segurança pública e adaptação às mudanças climáticas.
O PLP 121/2024 abre um rol de formas de abater dívida: transferência de recursos financeiros, participações societárias, bens móveis ou imóveis, cessão de créditos líquidos e certos com o setor privado ou a União, cessão de créditos inscritos na dívida ativa e direitos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional, criado pela reforma tributária. Como fica claro, tirante a transferência de recursos financeiros, todas as outras opções são bastante complexas e várias delas apresentam problemas de valoração e/ou liquidez.
Há também uma regra de transição no PLP 121/2024. Nos primeiros cinco anos, é proposta uma escada de pagamentos para os Estados que estão no Regime de Recuperação Fiscal (RRF), isto é, Rio de Janeiro, Goiás e Rio Grande do Sul. No primeiro ano, esses Estados pagarão apenas 20% da parcela devida; no segundo ano, 40%; e assim por diante, até chegarem a 100% da parcela devida no quinto ano. Pires observa que são condições muito favoráveis para os Estados que mais devem e que hoje não estão pagando suas dívidas. A ideia é incentivar a adesão desses Estados e de Minas Gerais, que ainda não teve sua adesão ao RRF aprovada, mas teve o pagamento da dívida suspenso por liminar do STF.
Considerando-se as condições atuais de financiamento e que os Estados como um todo tenderão às alternativas que resultam em pagamento de IPCA+0% nas suas dívidas na União, Pires fez um cálculo simples do subsídio anual implícito no PLP 121/2024, que é de R$ 48 bilhões. Mas ele acrescenta que o subsídio efetivo será ainda maior, justamente porque alguns dos principais Estados em dificuldade (grupo no RFF, que inclui grandes Estados) pagarão ainda menos nos primeiros anos, pela regra de transição. Considerando a escada de pagamentos para esses Estados, o subsídio deve chegar a R$ 62 bilhões no primeiro ano.
Segundo Pires, o PLP 121/2024, apesar de aspectos problemáticos que serão apontados adiante, melhorou em relação à sua versão original. O projeto aprovado incluiu algumas contrapartidas, na forma de limite para crescimento das despesas dos Estados que aderirem ao acordo. São três as regras de despesa: IPCA+ 0%, caso não tenha havido aumento de receita no ano anterior; IPCA+50% da variação real positiva da receita primária apurada, caso o Estado tenha obtido resultado primário nulo ou negativo; e IPCA+70% da variação real positiva da receita primária, caso o Estado tenha resultado primário positivo.
Pires observa que há um paralelismo forte entre essas contrapartidas e a regra de despesa do novo arcabouço fiscal do governo federal, que limita o crescimento da despesa a 70% do crescimento real da receita (já o piso de 0,5% e o teto de 2,5% para o aumento da despesa, presentes no arcabouço, não constam do PLP 121/2024). Mas há muitas exclusões dos limites de crescimento do gasto do PLP 121/2024, sendo as mais importantes as despesas de saúde e educação, as despesas financiadas com as transferências obrigatórias e as decorrentes das obrigações criadas pela própria renegociação. Para o pesquisador do FGV IBRE, é provável que a exclusão de saúde e educação se deva justamente aos problemas que os dois setores, que crescem a 100% do aumento da receita líquida, estão trazendo para o cumprimento do novo arcabouço fiscal. Nos Estados, ele observa, a vinculação de saúde e educação à receita pesa até mais do que no governo federal. Também ficam excluídas as despesas financiadas com as transferências obrigatórias e as próprias obrigações financiadas pela renegociação.
Outra mudança introduzida pelo PLP 121/2024 no âmbito da renegociação da dívida estadual é a criação do Fundo de Equalização Federativa, com distribuição de 80% dos recursos via Fundo de Participação dos Estados (FPE) e os restantes 20% pelo inverso da relação entre dívida consolidada e receita consolidada líquida (RCL). Nesse segundo caso, é um critério para que se distribua menos recursos para os Estados mais endividados. Pires estima que esse Fundo deve receber aportes anuais próximos a R$ 14 bilhões nos primeiros anos, se todos os Estados aderirem. O Fundo possui um forte efeito distributivo dos Estados mais devedores – São Paulo e os quatro já mencionados – para os menos endividados.
A fiscalização do cumprimento do PLP 121/2024, por sua vez, ficará por conta dos respectivos Tribunais de Contas dos Estados (TCEs). E ao Ministério da Fazenda caberá receber os relatórios e dar publicidade, o que limita bastante o seu controle sobre os procedimentos relativos ao PLP 121/2024. Pires lembra que a lei 9.496, da renegociação no governo FHC, fazia do Ministério da Fazenda um “verdadeiro FMI dos Estados”. Já Samuel Pessôa, pesquisador do FGV IBRE, acrescenta que os TCEs minaram a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) ao aceitarem manipulações que os Estados fizeram do conceito de folha salarial (como incluir contribuição para a Previdência, pensão por morte etc.), que tem limites como porcentual da RCL.
Histórico das renegociações – O processo de renegociação das dívidas estaduais tem início com a restruturação realizada pela Lei 9.496/1997, permitindo a assunção de R$ 95,3 bilhões pela União, representando 9,6% do PIB. Segundo Pires, foi o acordo de renegociação de dívidas entre os entes federados com vida mais longa. Até hoje, prossegue o economista, a Lei 9.496/1997 é uma espécie de marco e modelo para as outras rodadas de renegociação. Ela permitiu que a União consolidasse todas as dívidas estaduais e as renegociasse, num total de R$ 95,3 bilhões, ou 9,6% do PIB na época. A atualização monetária do saldo devedor dessas dívidas era de IGP-DI+6% para os Estados que amortizassem 20%; IGP-DI+7,5% para os que amortizassem 10%; e IGP-DI+9% para os que não fizessem nenhuma amortização inicial. À época, a maioria dos Estados concordou com a quitação de 20%, e, portanto, com a atualização da dívida a IGP-DI+6%. Alagoas, Minas Gerais e Pará quitaram apenas 10%, e ficaram com a dívida rodando a IGP-DI+7,5%.
Para não comprometer o orçamento público, havia um limite de pagamento como porcentual da receita líquida real, com o que superasse esse teto sendo refinanciado à frente. Em contrapartida à renegociação, os Estados tiveram que aderir ao Plano de Ajuste Fiscal (PAF), monitorado pelo Ministério da Fazenda. Pires nota que elementos da Lei 9.496/1997 estão incluídos do PLP 121/2024, como a amortização incentivada, a preocupação com a capacidade de pagamento dos Estados e algum compromisso fiscal.
Segundo o economista, o acordo da Lei 9.496/1997 funcionou bem por um razoável período, sendo reforçado pela promulgação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Ele acrescenta que o período de crescimento econômico mais veloz nos anos 2000 contribuiu para reduzir os conflitos políticos no orçamento e facilitou o cumprimento desses acordos. Bráulio Borges, pesquisador do FGV IBRE, e também ativo no Centro de Política Fiscal e Orçamento Público do IBRE, aponta adicionalmente que o aumento de carga tributária da União pelo ajuste fiscal iniciado em 1999 beneficiou Estados e municípios via transferências para o FPE e o Fundo de Participação dos Municípios (FPM). Os dois fundos de participação saíram de 2,5% do PIB em 1997 para 3,7% em 2005, lembra Borges. Isso, obviamente, também deu fôlego à negociação da Lei 9.496/1997. Ele acrescenta ainda que a alta de carga tributária que o governo federal bem buscando para cumprir as metas fiscais também aumentará o FPE/FPM, possivelmente para perto de 4,5% do PIB
Já a Lei Complementar 148, de 2014, foi a primeira mudança importante na Lei 9.496/1997, alterando os encargos contratuais para IPCA+4% ou Selic, o que fosse menor. A alteração foi retroativa a janeiro de 2013. O principal argumento para a mudança à época é que as taxas de juros do Brasil haviam caído, e os subsídios da União aos Estados, implícitos na negociação de 1997, haviam sido invertidos em favor do governo federal. Na época da definição dos indexadores de IGP-DI+6% a IGP-DI+9%, havia uma realidade de juros extremamente altos no País, o que mudou completamente no final dos anos 2000, a partir de quando o custo de captação da União ficou inferior à correção da dívida dos Estados pela Lei 9.496/1997, invertendo o sentido do subsídio. Entre 2012 e 2014, quando a Selic atingiu o mínimo de 7,25%, os Estados começaram a reclamar fortemente da correção das dívidas pelo índice bem maior de IGP-DI+6% (ou +7,5%). O governo federal aceitou negociar, e o resultado foi a LC 148. Pires nota que, no federalismo fiscal, espera-se, efetivamente, que eventuais subsídios corram na direção da União aos entes subnacionais, e não o inverso.
As demais mudanças relativas à dívida estadual com a União estão ligadas à crise fiscal iniciada de forma aguda em 2015-16 e que, de certa forma, tem repercussões até hoje. A LC 156, de 2016, ampliou os prazos de pagamento em 240 meses e eliminou a necessidade de servir a dívida naquele próprio ano (auge da crise), com retorno gradual das parcelas até julho de 2018. A contrapartida era o comprometimento dos Estados de limitar o crescimento da despesa à correção inflacionária, de forma similar ao teto de gastos da União. Um total de 11 Estados não conseguiu se manter nesse limite, justificando o não cumprimento pelo fato de haver os mínimos constitucionais de gasto de saúde e educação, vinculados à receita. Esse problema foi corrigido pela LC 178, de 2021, que excluiu do limite a parcela dos aumentos das despesas decorrente dos mínimos constitucionais.
Pires orientou a tese de doutorado do economista Felipe Luduvice sobre a dívida estadual. Luduvice calculou o valor presente líquido dos contratos celebrados no âmbito da Lei 9.496/1997 em valores de dezembro de 2021 e o comparou com as mudanças posteriores. Sua estimativa é de que Lei 9.496/1997, ex-post, corresponde a uma transferência de R$ 227 bilhões dos Estados para a União (no início, o subsídio correu em sentido contrário, como se apontou acima, mas o juro no Brasil caiu, e a situação se inverteu, se tornando liquidamente a favor do governo federal). Mas obviamente não foi isso que se imaginou quando a Lei 9.496/1997 foi negociada. Os economistas Fabio Giambiagi e Francisco Rigolon estimaram que o valor presente do subsídio aos Estados, pelos parâmetros de quando a Lei 9.496/1997 foi aprovada, girava em torno de R$ 100 bilhões em favor dos cofres estaduais (a valores de dezembro de 2021, quando os dois economistas fizeram esse cálculo).
A tese de Luduvice aponta, por outro lado, que o valor presente dos contratos de dívida estadual repactuados pela LC 148 (de 2014, mas retroativa ao início de 2013) representa um subsídio da União aos Estados de R$ 75,1 bilhões, a valores de dezembro de 2021. A LC 156, de 2016, aumentou ligeiramente esse subsídio aos Estados, para R$ 76,9 bilhões. Como analisa Pires, “é como se a LC 148 tivesse realinhado as taxas de juros dos contratos de renegociação da dívida estadual com a União de forma a reestabelecer os subsídios que foram inicialmente pactuados em 1997”.
Luduvice também mostra em sua tese que, ao longo dos anos 2000, houve uma queda da dívida estadual com a União como proporção do PIB, saindo de um pico neste século em torno de 20% do PIB em 2002-03 para aproximadamente 7%. Assim, nota Pires, a dívida dos Estados, a partir da Lei 9.496, tendeu a se tornar mais sustentável, com os contratos sendo honrados nos anos 2000 pelo crescimento de receita, e nos anos 2010 a partir de seguidas repactuações dos encargos contratuais.
No entanto, prossegue o pesquisador do FGV IBRE, esse equilíbrio parece não ter sido mantido na atual etapa de renegociação da dívida estadual por meio do PLP 121/2024. Na sua visão, os juros estão sendo reduzidos bem mais do que o razoável, já que a União capta a aproximadamente IPCA+6% e o custo da dívida estadual deve tender para IPCA+0%.
Segundo Pires, o PLP 121/2024, quando visto em conjunção com o novo arcabouço fiscal, aponta uma mudança no regime fiscal do Brasil, fortalecendo o vínculo entre receita e despesa. Assim como a União, os Estados vão gastar se tiverem receita, o que cria algum viés pró-aumento de carga tributária. Por outro lado, só se gasta se houver receita, o que muda a tendência no Brasil de se criar despesas primeiro, para depois se buscar formas de financiá-las, o regime fiscal conhecido como “spend and tax”. Como exemplos dessa tendência histórica, o economista cita o Fundeb, a PEC da Transição e muitos dos critérios de concessão de benefícios previdenciários e sociais. Naturalmente, a transição produz conflitos, porque há dificuldade de aumentar a carga tributária a partir de certos limites, o que gera fadiga política. Adicionalmente, há uma série de gastos que já são vinculados à arrecadação e que não seguem as regras específicas dos novos dispositivos para o crescimento da despesa federal ou dos Estados.
Pires aponta ainda que, se, por um lado, essas regras de despesas fortalecem a política fiscal, por outro aumentam a sua volatilidade – já que a receita varia muito – e são pró-cíclicas. Se é verdade que o mecanismo funciona para cima, o mesmo não pode ser dito do sentido contrário, porque, quando a receita cai, a despesa se mantém constante – e não há instrumentos para atenuar esse efeito colateral. O governo tentou fazer uma modificação no conceito de RCL para atenuar o problema da vinculação dos gastos de educação e saúde a 100% do crescimento da receita, mas não conseguiu manter essa alteração no texto final aprovado, de forma que a dificuldade se mantém.
Outro aspecto do PLP 121/2024 para o qual Pires chama a atenção é que foi a primeira de várias rodadas de renegociação da dívida estadual com o governo federal em que se introduziu um mecanismo redistributivo da União para os Estados. Neste caso, a União renuncia a juros para os Estados ampliarem investimentos. Já o Fundo de Equalização Federativa transferirá liquidamente recursos para os Estados menos endividados, que se sentem prejudicados pelos grandes subsídios envolvidos nessas renegociações e que não os beneficiam.
O conflito federativo relativo às dívidas estaduais com a União, aliás, é um grande problema que se arrasta há muitos anos. A Justiça tende sistematicamente a dar ganho de causa a Estados que reduzem ou interrompem o serviço da dívida, alegando que não podem cortar serviços públicos básicos. Em 14 de agosto, na semana de aprovação do PLP, o governo de Minas Gerais renovou uma série de benefícios fiscais até 2028, logo após ter conseguido junto ao STF suspender pela quinta vez consecutiva os pagamentos da sua dívida junto à União, ou desde 2018. “Ou seja, a União está financiando os benefícios fiscais de Minas Gerais”, diz Pires.
Um segundo exemplo é a proposta de Fátima Bezerra, governadora do Rio Grande do Norte, de que os Estados do Norte e Nordeste incluam, na atual renegociação, as dívidas desses Estados com os bancos públicos, como BNDES, Caixa e Banco do Brasil. É uma proposta de reestruturar a dívida de Estados que não tem problema fiscal, aponta Pires. É verdade que a proposta é uma tentativa de criar uma compensação pelos benefícios a outros Estados, embutidos no PLP 121/2024, que os governos do Nordeste consideram injustos. O problema, porém, é que essa “solução” aumenta ainda mais a dependência dos Estados em relação ao financiamento do governo federal, reforçando um círculo vicioso em termos federativos. Essa proposta não foi incluída na atual renegociação, mas é sintomática da complexidade dos interesses envolvidos.
Numa perspectiva mais ampla, Pires considera que o sucesso da atual renegociação entre União e Estados depende de três fatores. O primeiro seria incentivar os Estados em dificuldades financeiras a voltar a pagar de forma gradual as dívidas, condição fundamental para que se possa avançar de forma mais estruturante nesse tema a longo prazo. O segundo é o maior crescimento econômico, para diminuir o conflito político nos orçamentos estaduais. Pires nota que há atualmente um ciclo de aceleração econômica, para um ritmo provavelmente inferior ao da década de 2000, mas superior aos anos que se seguiram à crise de 2015-16. Se esse arranque for sustentável, é um ponto favorável ao sucesso da renegociação. A terceira questão é o fato de que, apesar da estabilidade dos níveis de dívida estadual, existem situações muito díspares, com poucos Estados devendo muito e provavelmente tendo que passar por alguma reestruturação fiscal. Dessa forma, procurar uma solução fiscal para esses Estados mais endividados (a maioria deles entre os maiores da Federação) é muito importante.
Na época em que se criaram os regimes de recuperação fiscal, a ideia era ter duas ou três alternativas diferentes, dependendo da gravidade do endividamento. Essas iniciativas acabaram não funcionando bem por uma série de razões, na visão de Pires. Em alguns Estados, houve “fadiga de agenda”: as tentativas construtivas de solucionar o problema fiscal em consonância com as iniciativas do governo federal no tema da dívida estadual, no início, contrastam com o período mais recente, no qual o foco é em gastar mais e fazer pressões políticas para reduzir ou eliminar o pagamento da dívida. Isso mostra que há problemas políticos de sustentar um ajuste fiscal muito duro ao longo do tempo, com medidas como permanecer um grande período sem reajuste nominal para o funcionalismo. Essa quase impossibilidade deve ser considerada pelas partes na negociação.
Outro problema pelo qual os regimes de recuperação fiscal não funcionaram bem são inconsistências da própria legislação, como dar reajuste zero para pessoal e cumprir limites mínimos de saúde e educação, serviços intensivos em mão de obra. Por fim, Pires cita a questão do “risco moral”: em várias situações o Judiciário sustentou os pedidos de suspensão de pagamento da dívida pelos Estados, que alegaram nessas ocasiões que havia o risco de não conseguirem prestar serviços públicos relevantes. Essa postura do Judiciário enfraqueceu muito o poder de barganha e a capacidade disciplinadora da União frente aos Estados. Assim, na visão do pesquisador, novos acordos têm que envolver o Judiciário.
Em termos mais estruturais, Pires pensa que a atual rodada de renegociação reduziu relativamente o papel da LRF como farol das finanças públicas. “As discussões de relações federativas hoje estão ocorrendo à margem da LRF”, ele diz. Uma das razões para isso é que o conceito de responsabilidade fiscal no âmbito federativo caminhou numa direção muito diferente do estabelecido pela LRF. Os limites de endividamento da LRF, por exemplo, não fazem muito sentido quando se pensa que quase toda a dívida dos Estados com a União se dá numa relação de negociação direta com o governo federal. Um segundo problema, para o pesquisador, é que há muitos alertas, como limite de endividamento e de pessoal, mas poucos mecanismos corretivos que promovam algum tipo de correção quando esses tetos são furados.
Em conclusão, Pires considera interessante que se aproveite a discussão do PLP 121/2024 – principalmente na medida em que a nova rodada de negociação funcione e dê certo – para abrir uma janela para se pensar em um novo marco consolidando a experiência de 27 anos de relações federativas em torno da questão da dívida estadual. Esse objetivo incluiria o desenvolvimento de um ambiente no qual os Estados dependam menos da União para se financiar e um conjunto de regras fiscais que crie mecanismos que permitam aos Estados resolverem seus problemas fiscais e de endividamento.
Este artigo foi publicado originalmente no Blog do IBRE.
*As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional da FGV.
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