Economia

Poderá o ”Sur” ser o novo “Euro” da América Latina?

Francisco Manuel Figueira de Lemos,Marco Antonio Carvalho Teixeira

A primeira visita ao exterior de uma nova presidência é um acontecimento politicamente relevante, repleto de simbolismo, e, sobretudo, um momento de proclamação da visão e ambição do governo para o seu mandato. O Presidente Luiz Inácio Lula da Silva escolheu a Argentina, país vizinho e integrante do Mercosul, fazendo incluir no memorando de entendimento celebrado com o seu congénere argentino a referência à criação de uma moeda sul-americana. As reações na imprensa não se fizeram esperar e, de entre interpretações mais ou menos literais, a analogia com o Euro tornou-se inevitável.

Está claro no memorando que a eventual “nova moeda sul-americana” não é, nem se assemelha com o Euro por três razões fundamentais de forma e substância. Primeiro, porque a moeda agora proposta se entende como uma moeda comum, enquanto que o Euro compreende uma moeda única. Ao contrário da moeda europeia, que substituiu todas as moedas nacionais dos países que a adotaram, o Real e o Peso Argentino mantêm-se como moedas soberanas, reguladas pelos respetivos bancos centrais, e sem abdicar de qualquer instrumento de política monetária nacional. Por outras palavras, os governos brasileiro e argentino preservam, na íntegra, a capacidade de intervenção nas suas economias, expandindo-as ou contraindo-as pela autodeterminação das taxas cambial e de juros.

A segunda razão é que a nova moeda, que por simplicidade titulamos como “Sur”, sendo digital, diferencia-se de outras moedas fiat, como o Euro. Na prática, o “Sur” compara-se a uma cripto-moeda, contudo, ao invés do controle descentralizado pelo poder de computação em blockchain, a fidúcia do “Sur” fica assegurada pelo poder institucional dos bancos centrais. Esta virtualização da moeda comum comporta vantagens de custo consideráveis, seja na sua emissão, que tenderá para custos marginais zero, seja nos custos de transação, que conhecerão acentuada redução, nomeadamente se o “Sur” não se mantiver pelo bilateralismo entre Brasil e Argentina, e conseguir suceder para o multilateralismo latino-americano.

Na terceira razão reside o fato que as duas moedas se diferenciam pelas circunstâncias do seu processo de criação. A construção do Euro seguiu-se a quase 50 anos de mercado comum, onde os sucessivos alargamentos exigiram apertados requisitos econômicos, legais e políticos aos países candidatos. Quer isto dizer que antes de adotarem a moeda única, os países membros já haviam limitado grande parte do espectro das suas políticas econômicas. Após a entrada na Zona Euro, os países membros, pura e simplesmente, tiveram de abdicar das suas políticas monetárias nacionais. Ora, apesar da criação da moeda comum sul-americana ter a sua génese em dois países integrantes do Mercosul, estes não veem reduzido o âmbito da sua soberania econômica, legal ou política.

Pelas razões enunciadas, a questão de criação de uma moeda latino-americana, para o Brasil, não se pode colocar apenas em um balanço entre vantagens e desvantagens, mas antes no desígnio do governo brasileiro na construção desta eventual moeda ou de outros instrumentos de fortalecimento do Mercosul.

Mais do que uma divisa, a criação do Euro teve um papel fundamental de coesão econômica entre os países europeus aderentes. A moeda única europeia, além de reduzir os custos cambiais das transações intracomunitárias, conseguiu ainda disputar a supremacia do dólar americano (USD) nas transações extracomunitárias, possibilitando aos países da Zona Euro diminuir as suas reservas de moeda americana. A apreciação do Euro face ao USD sucedeu-se de forma quase imediata, transformando a moeda europeia em divisa forte, com capacidade de emissão de dívida nos mercados internacionais. O acesso a melhores condições de financiamento deu robustez às economias dos países mais frágeis, quebrando uma desvantagem competitiva estrutural com que estes se confrontaram durante décadas.

Ainda, o processo de coesão europeia só foi possível com o empenho dos países membros de economias mais fortes. O Brasil é a maior economia da América Latina, o que lhe confere também a maior responsabilidade na construção do Mercosul. Uma moeda comum apenas entre o Brasil e a Argentina poderá não caber nos mais ortodoxos compêndios de política monetária, mas se essa for a gênese de uma moeda comum multilateral à maioria dos países da América Latina, então pode ficar comprometida a hegemonia que o dólar americano goza hoje em dia nas transações comerciais no hemisfério Sul. Nessa medida, os países da América Latina aderentes poderão diminuir as suas reservas em USD e apostar no fortalecimento das respetivas moedas, desfazendo o fantasma da dolarização das suas economias nacionais, fenômeno este, aliás, que já acontece com a Argentina e a Venezuela.

A moeda única europeia fundou-se em uma forte comunidade econômica de países europeus. De modo semelhante, mas de ordem inversa, a moeda comum latino-americana pode ser o marco fundador de um bloco econômico forte, o ponto de partida de um processo de integração dos muitos países da América Latina, em um grande Mercosul incontornável na construção da economia mundial. Esta é uma responsabilidade à qual o Brasil não pode ficar alheio.

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  • Francisco Manuel Figueira de Lemos,Marco Antonio Carvalho Teixeira

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