Direito

Qual a dimensão da produção normativa da Receita Federal?

Autor
Lucas Thevenard Gomes
Luiz Felipe Monteiro Seixas
Data

A Lei Complementar nº 199 instituiu o Estatuto Nacional de Simplificação das Obrigações Acessórias. No jargão tributário, as obrigações acessórias correspondem àquelas de caráter formal/instrumental, exigidas dos contribuintes (empresas e indivíduos), com a finalidade de fornecer ao Fisco (federal, estadual e municipal) informações relativas ao pagamento de tributos, a exemplo do envio de declarações, emissão de nota fiscal, guias de recolhimento, escrituração de livros fiscais, dentre outras. O objetivo da Lei Complementar nº 199, como seu título sugere, é o de simplificar essas obrigações, diminuir o custo para os contribuintes e aumentar sua conformidade.

Em que pese o mérito da iniciativa, essa não será uma tarefa fácil, sobretudo quando nos deparamos com o volume colossal de normas (nacionais e subnacionais) relacionadas às obrigações acessórias, volume este que tem aumentado no decorrer dos anos. O resultado é um aumento significativo do que denominamos de “regulação tributária”, em cuja produção o protagonismo da Receita Federal do Brasil (RFB) é evidente.

Em recente estudo publicado na Revista Direito GV (“A evolução da produção normativa da Receita Federal do Brasil (1988-2020): análise empírica e implicações regulatórias”), procuramos dimensionar a evolução da regulação tributária da RFB, desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 até o fim do ano de 2020. As normas examinadas (mais de 13 mil, as quais incluem portarias, instruções normativas, resoluções etc.) se limitaram àquelas de efeito geral, para contribuintes indeterminados. Adotando proxies textuais, mapeamos, nos textos dessas normas, a existência de dispositivos que instituem deveres e obrigações, impõem multas e penalidades ou alteram prazos legais. Por fim, levantamos também os dados relacionais dos atos normativos, ou seja, se eles alteravam ou já haviam sido alterados (ou revogados) por outros atos normativos.

Apesar da importância dessas normas, a pesquisa constitui o primeiro levantamento sistemático de dados quantitativos a respeito da produção normativa da RFB, utilizando ferramentas de processamento natural de linguagem para (NLP) para estudar o conteúdo dos dispositivos aprovados. A análise dos dados evidenciou, em primeiro lugar, que o número total de normas publicadas pela RFB aumentou ao longo do período, ano após ano. Além disso, constatamos que, não apenas mais atos normativos são aprovados a cada ano, mas também a extensão média desses atos está crescendo a cada ano, o que sugere um adensamento da rede de regulamentações criadas pelo órgão. Ao analisarmos os dados relacionais levantados, observamos também que o número de interações entre esses atos normativos tem aumentado, ocorrendo uma redução bastante sensível do tempo necessário para que um novo ator normativo seja alterado por outros atos. Por fim, a análise do conteúdo das normas também revelou que o número total de dispositivos que dispõem sobre obrigações, penalidades e prazos legais também está crescendo, ano a ano. 

A consequência prática desse fenômeno não poderia ser diferente: maior complexidade do sistema tributário brasileiro e aumento dos custos de conformidade da tributação para os agentes econômicos. Nesse caso, os custos de conformidade representam uma verdadeira tributação oculta, já que seus efeitos não são de fácil verificação, mas que oneram significativamente o preço dos produtos e serviços, gerando perdas de competividade e afetando diretamente o consumo e a renda. Conforme aponta o relatório Doing Business Subnacional Brasil 2021, as empresas brasileiras gastavam entre 1.483 e 1.501 horas por ano para preparar, declarar e pagar tributos, mais do que qualquer outro país. O relatório atribui esse indicador à legislação e obrigações complexas, impondo cálculos complicados e uma quantidade excessiva de informações para as declarações fiscais. Como se vê, o excesso de obrigações acessórias está entre os principais desafios que as empresas enfrentam ao abrir negócios no Brasil, o que ilustra os efeitos da regulação tributária da RFB sobre os contribuintes.

Por outro lado, poucas e tímidas iniciativas têm sido realizadas com o propósito de reduzir o volume da regulação tributária brasileira. Desde 2021 a RFB tem realizado a revogação de alguns atos normativos e, mais recentemente, instituiu o Projeto Consolida, revogando 124 instruções normativas cujos efeitos já estavam extintos. No entanto, essas medidas, ainda que meritórias (e que precisam se ampliadas), não levam em conta um outro aspecto do fenômeno: a necessidade de se realizar uma análise e controles prévios das normas que estão sendo criadas.

A Receita Federal, enquanto principal órgão regulador federal em matéria tributária, deveria pautar sua produção normativa por critérios racionais e de eficiência, que levassem em conta os potenciais efeitos e consequências sobre empresas e consumidores, adotando, por exemplo, metodologias como a Análise de Impacto Regulatório (cuja obrigatoriedade foi instituída pelo Governo Federal desde o ano de 2020, por meio do Decreto nº 10.411) e incluindo procedimentos de participação social para permitir que os principais afetados pelas obrigações acessórias (no caso, os contribuintes) também contribuam com sua discussão e criação. Essas iniciativas também devem ser estimuladas para a produção de normas tributárias em nível subnacional (por Estados e Municípios), que também afetam significativamente empresas e indivíduos. 

Naturalmente, essas mudanças não seriam facilmente implementadas no curto prazo, mas deveriam ser encaradas como prioritárias na agenda de reforma tributária atualmente em discussão, posto que as consequências de uma má (ou excessiva) regulação tributária afetam desenvolvimento econômico e a atração de investimentos tanto quanto a própria carga tributária em si.

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