Regulação baseada no risco
Em recente entrevista para a The Regulatory Review, a professora Julia Black, uma das maiores referências mundiais em regulação da atualidade, aborda o papel positivo que a regulação baseada no risco pode exercer em diferentes regimes regulatórios. Regulação baseada no risco, explica Black, é uma estratégia regulatória que consiste em “direcionar a regulação e o esforço regulatório para coisas que representam os maiores riscos para a sociedade ou para os objetivos regulatórios”, operando em dois níveis: na concepção dos sistemas regulatórios e na sua operacionalização.
No primeiro nível, a regulação baseada no risco significa (i) traçar o perímetro regulatório para definir o que está dentro e o que está fora e (ii) definir a calibragem regulatória de modo a permitir que os requisitos mais onerosos sejam colocados nas atividades que representam maiores riscos. No segundo nível, a regulação baseada no risco “significa direcionar recursos regulatórios para as organizações ou atividades que representam o maior risco para os objetivos do regulador, que normalmente são definidos por lei.”
A ideia de se dedicar maior atenção às coisas que oferecem riscos mais significativos parece ser bastante atrativa, especialmente diante do problema pervasivo de escassez de recursos (financeiros, tecnológicos, humanos) que aflige o setor público. No Brasil, a regulação baseada no risco tem sido adotada por reguladores de setores tão diversos como a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), o Banco Central (BC), a Superintendência de Seguros Privados (Susep), a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A adoção de tal estratégia regulatória é defendida por organizações como a OCDE, para quem a regulação deve ser projetada e executada “com foco no risco e proporcional ao risco” a fim de melhorar a eficiência, fortalecer a eficácia e reduzir a carga administrativa.
Mas a adoção da regulação baseada no risco atrai uma série de questões problemáticas que não podem ser ignoradas, como a própria Black reconhece. Por exemplo, a regulação baseada no risco pode levar cada departamento de um mesmo regulador a argumentar que a sua atividade é de alto risco, objetivando com isso atrair mais recursos para sua área. Outro aspecto problemático citado pela autora é que o receio de que o risco sob sua supervisão venha a se materializar pode tornar reguladores muito avessos ao risco, aumentando as classificações de risco e os recursos associados. Finalmente, é difícil definir o quanto deve ser gasto para gerenciar riscos baixos, que, cumulativamente, podem causar impactos relativamente altos ao longo do tempo.
Concentro-me, aqui, em certas questões que podem surgir na concepção dos sistemas regulatórios, primeiro nível de operação da regulação baseada no risco. Definir o que efetivamente representa um perigo para a sociedade ou para os objetivos regulatórios e estabelecer uma escala de priorização dos riscos envolve um juízo por parte do regulador que encobre uma série de complexidades. Tal juízo se inicia na avaliação dos objetivos do regulador, bem como de seu apetite pelo risco; passa pela análise dos perigos identificados nas entidades reguladas e no setor como um todo; e se encerra na atribuição de pontuações ou classificações com base nas avaliações e análises precedentes.
Em seu primeiro passo para adotar a regulação baseada no risco, o regulador precisa efetuar uma avaliação sobre os seus objetivos regulatórios. Para tanto, ele deve colocar em perspectiva o mandato legal que o legislador lhe conferiu para atuar em determinado setor regulado.
A questão pode não ser tão evidente quanto parece, uma vez que a legislação muitas vezes descreve os objetivos da intervenção estatal por meio de conceitos jurídicos indeterminados, que detêm o condão de suscitar diferentes definições sobre os objetivos a serem alcançados pelo regulador – por exemplo, a depender da análise, o escopo da intervenção pode parecer mais ou menos amplo. Isso sem falar na possibilidade de os objetivos regulatórios estarem definidos de forma dispersa e fragmentada na legislação, o que pode dificultar a tarefa do regulador de compreender toda a extensão de seus objetivos regulatórios.
As demais avaliações e decisões por parte do regulador – a definição do seu apetite pelo risco, a análise dos perigos existentes nas entidades reguladas e no setor como um todo e a atribuição de pontuações ou classificações com base nas avaliações e análises precedentes – envolvem aspectos ainda mais problemáticos. Isso decorre, em primeiro lugar, do caráter contestado da noção de risco, no sentido de que inexiste um consenso sobre o que exatamente significa um risco. Risco pode ser compreendido e aplicado à luz de diferentes disciplinas acadêmicas.
E como destaca Debora Lupton, em cada disciplina o risco assume “um status ontológico e epistemológico diferente, sendo pesquisado e compreendido de maneiras diferentes, usando diferentes ferramentas, métodos e estruturas de análise”. Segundo a autora, na lógica e na matemática risco é um problema calculável; na economia, um meio de garantir riqueza ou evitar perdas; na ciência e na medicina, uma realidade objetiva que pode ser medida, controlada e gerenciada; na psicologia, um fenômeno comportamental e cognitivo; no direito, “uma falha de conduta, um evento que causa desordem e que envolve custos, sendo, portanto, um objeto que requer intervenção legal.”
A multiplicidade de abordagens disciplinares não é uma questão meramente abstrata; antes, cada perspectiva disciplinar produz relevantes discussões no contexto da regulação. Por exemplo, uma perspectiva técnica do risco, em cujo âmbito se situam as abordagens baseadas na ciência e na medicina, tende a enfatizar o papel insulado dos especialistas na atividade de análise de risco, dada a crença na eficácia de suas metodologias analíticas para controlar o risco; perspectivas econômicas, por sua vez, favorecem a utilização de processos decisórios baseados em análises de custo-benefício; já as perspectivas psicológicas se preocupam, dentre outros fatores, com os vieses e heurísticas que afetam a tomada de decisão; finalmente, as perspectivas sociológicas afirmam que a percepção de risco dos indivíduos e dos especialistas é condicionada por contextos sociais.
Estudos desenvolvidos nesses campos disciplinares enfatizam certos aspectos que impactam a forma como o setor público seleciona, percebe e classifica os riscos, tais como: (i) os reguladores prestam contas a uma série de atores, tais como o grande público, o legislativo e as cortes judiciais, cujas dinâmicas e manifestações podem induzir o regulador a desenvolver uma maior ou menor tolerância ao risco; (ii) os meios de comunicação exercem um papel de significativa importância, pois eles deflagram processos de amplificação do risco capazes de produzir uma preocupação excessiva do regulador com o risco reputacional; (iii) como indivíduos, os reguladores são afetados por vieses e heurísticas que podem distorcer todo o seu processo decisório envolvendo o risco (o que eles imaginam ser o seu apetite pelo risco, o que eles imaginam ser os perigos existentes nas entidades reguladas e no setor como um todo e como ranquear esses riscos).
Algumas abordagens, inclusive, defendem posições competidoras entre si. Por exemplo, enquanto abordagens técnicas afirmam que os “receios irracionais” do público distorcem as prioridades nacionais, o que torna necessário promover um insulamento político dos especialistas responsáveis pela análise do risco, abordagens construtivistas afirmam que os riscos são sempre uma representação humana da realidade: o que se sabe sobre o mundo é uma formação cultural e social, o que enseja um maior engajamento das partes interessadas a fim de viabilizar a descoberta e a acomodação de diferentes perspectivas sobre o risco.
Todas essas complexidades que envolvem a concepção dos sistemas regulatórios, primeiro nível da regulação baseada no risco mencionada por Black, revelam que a tomada de decisão do regulador quanto ao perímetro regulatório e quanto à calibragem regulatória não se baseia em um juízo inerentemente neutro da realidade.
A questão, portanto, enseja uma atenção redobrada com relação à accountability do regime regulatório que opta pela adoção da regulação baseada no risco, especialmente porque tal estratégia regulatória acaba por delimitar o âmbito de atuação do regulador (o que ele deve fazer) e a maneira como ele deve atuar dentro deste quadro de referência (como ele deve fazer). Em outras palavras, a adoção da regulação baseada no risco estabelece os horizontes da responsabilização do regulador perante a sociedade.
Accountability, na acepção aqui utilizada, diz respeito a uma maior abertura da atividade regulatória em direção à sociedade, o que se opera em, pelo menos, duas dimensões: (i) o regulador que opta pela adoção da regulação baseada no risco deve proporcionar ampla transparência à tomada de decisão sobre o perímetro regulatório e a calibragem regulatória, permitindo que as partes interessadas e o público em geral tenham pleno conhecimento de todos os aspectos que envolvem a estruturação e funcionamento dessa estratégia regulatória; e (ii) todo esse processo decisório deve ocorrer de maneira articulada com as percepções de risco da sociedade, sendo de significativa relevância a utilização de mecanismos de participação social, que viabilizam o fornecimento, pelas partes interessadas e pelo público em geral, de valiosas informações sobre a viabilidade e as implicações práticas do risco e sua regulação, além de proporcionarem um maior compliance regulatório, na medida em que as partes tendem a produzir uma maior conformidade quando percebem que suas opiniões e percepções foram consideradas pelo regulador.
Assim concebida, a accountability é capaz de oferecer maior legitimidade e eficácia à regulação baseada no risco, revelando-se, por isso mesmo, uma providência imprescindível para o sucesso da implantação dessa estratégia regulatória em diferentes setores regulados brasileiros.