As tarifas de Trump e o “USExit”
O governo Trump anunciou ontem o maior aumento de tarifas de importação de sua história. Essa medida está diretamente ligada às ideias do economista Stephen Miran, recentemente nomeado para presidir o Council of Economic Advisers da atual administração. Uma explicação detalhada de sua visão -- que embasa as políticas em curso -- está no documento A Users Guide to Restructuring the Global Trading System, publicado em novembro de 2024. Nele, Miran apresenta a fundamentação teórica para uma possível reconfiguração radical do sistema comercial global -- ideias que parecem agora guiar a política comercial americana.
A Visão de Miran para um Novo Sistema Comercial
Para Miran, o problema central da economia americana é a persistente sobrevalorização do dólar, que prejudica a indústria manufatureira ao tornar as exportações menos competitivas e as importações artificialmente baratas.
"O dólar é persistentemente sobrevalorizado, em grande parte porque os ativos em dólar funcionam como moeda de reserva mundial", argumenta Miran, recorrendo ao "dilema de Triffin" -- a tensão entre o papel do dólar como moeda global e a necessidade de equilíbrio nas contas externas dos EUA.
A forte demanda por dólares, motivada por seu papel de reserva global, implicaria um câmbio sobrevalorizado que enfraquece as condições para produtores e exportadores domésticos, resultando em queda da produção e do emprego nos EUA. As tarifas de importação, segundo ele, seriam uma forma de compensar essa "distorção".
Miran afirma ainda que o impacto inflacionário das tarifas seria limitado, graças ao que chama de "compensação cambial" -- ou seja, países que sofrem tarifas tendem a ver sua moeda desvalorizar-se em proporção semelhante, neutralizando o impacto nos preços. Citando a guerra comercial EUA-China de 2018-2019, ele destaca que, embora a tarifa efetiva sobre produtos chineses tenha subido 17,9 pontos percentuais, o yuan se desvalorizou 13,7%, resultando em apenas 4,1% de aumento nos preços de importação em dólares.
"Com compensação cambial completa, as tarifas podem ter impactos inflacionários bastante modestos, entre 0% e 0,6% nos preços ao consumidor", escreve Miran. Ele estima que uma tarifa de 10% sobre todas as importações teria um impacto bastante limitado na inflação.
Miran propõe ainda um sistema de "escalas graduadas", em que diferentes países enfrentariam níveis tarifários distintos com base em critérios como acordos de segurança com os EUA, práticas comerciais e políticas cambiais -- ou seja, o acesso ao mercado consumidor americano passaria a ser usado como alavanca de negociação.
Críticas à Teoria da "Tarifa Sem Dor"
Há sérias dúvidas sobre as premissas centrais da tese de Miran, especialmente sua visão otimista sobre os impactos inflacionários das tarifas.
Estudos microeconômicos detalhados, como os de Alberto Cavallo (Harvard), Gita Gopinath (FMI e Harvard), Pablo Fajgelbaum (Princeton) e David Weinstein (Columbia), contradizem diretamente essa tese. Eles mostram que, na prática, as tarifas de 2018-2019 foram repassadas quase integralmente aos preços de importação, com os consumidores americanos arcando com a maior parte dos custos -- o que vai contra a hipótese de compensação cambial.
Além disso, o foco de Miran no dilema de Triffin ignora análises mais recentes. O prêmio Nobel Ben Bernanke, por exemplo, atribui os déficits comerciais americanos ao chamado "Excesso Global de Poupança" (Global Saving Glut), e não necessariamente ao papel do dólar como reserva internacional. Títulos americanos são vistos como ativos livres de risco, atraindo enorme demanda da poupança global. Isso de fato fortalece o dólar e prejudica o saldo comercial. Mas, em termos líquidos, parece muito mais uma bênção do que uma maldição: os EUA conseguem financiar sua dívida a juros baixíssimos.
Além dessas críticas, vejo outros quatro pontos relevantes que Miran pouco considera:
Outros países devem reagir com elevação de tarifas;
Ele ignora a complexidade das cadeias de valor globais: muitas empresas americanas dependem de insumos importados para manter sua competitividade. Tarifas mais altas podem prejudicar sua atuação global;
Há risco de perda de produtividade no médio e longo prazo, devido à redução da concorrência e ao aumento da ineficiência alocativa;
O comércio global é uma via de mão dupla: proteger o mercado interno pode significar perda de acesso a mercados externos para os exportadores.
O Que Está em Jogo
Há alguns anos, o Reino Unido saiu da União Europeia -- o Brexit. O resultado tem sido desastroso. Estudos mostram que tanto a economia britânica quanto a europeia evoluíram pior do que teriam evoluído num cenário contrafactual de permanência do Reino Unido no bloco.
O que o governo Trump faz agora é algo semelhante, mas em escala global: um USExit, no qual a economia americana se descola do restante do mundo.
Minha expectativa é de uma dinâmica econômica consistentemente pior nos próximos anos -- tanto para os Estados Unidos quanto para o resto do mundo. As quebras nas cadeias globais, a perda de eficiência e o enfraquecimento da inovação certamente levarão a economias mais estagnadas e com maior dificuldade para lidar com pressões inflacionárias.
Outros países já tentaram políticas similares às prescritas por Miran. O Brasil, por exemplo, com sua política de substituição de importações. A justificativa por aqui é parecida: embora não tenhamos uma moeda de reserva global, nem sejamos porto seguro da poupança internacional, alega-se que o real está sobrevalorizado por causa da "doença holandesa", na qual a exportação de bens primários valoriza o câmbio e prejudica a indústria nacional.
Independentemente da teoria usada para justificar esse tipo de política, o objetivo é sempre o mesmo: proteger a indústria doméstica. Não vejo motivos para acreditar que, nos EUA, o resultado será diferente do que ocorreu no Brasil: queda da produtividade e do nível de desenvolvimento. A diferença é que, no caso americano, o resto do mundo pode acabar indo junto.
*Artigo publicado originalmente no jornal O Estado de São Paulo em 03/04/2025