Direito

Tensões geopolíticas e Direito Internacional

Autor
Rabih Nasser
Data

Os conflitos armados, as crises humanitárias e as tensões geopolíticas a que o mundo assiste fazem duvidar da relevância das regras internacionais. O Direito internacional, que existe para organizar a vida da sociedade internacional de acordo com princípios de equidade e justiça, parece incapaz de cumprir sua função. Apesar de ser compreensível um certo ceticismo, há razões para continuar confiando no potencial das regras e instituições internacionais de ajudarem a lidar com os desafios que o mundo enfrenta.

A guerra na Ucrânia, as crises humanitárias em Gaza, no Sudão, no Haiti e em outros lugares, as dificuldades de alcançar consensos no Conselho de Segurança da ONU e em outros organismos internacionais, as tensões entre EUA e China, são todos sintomas de uma mudança significativa na ordem internacional.

Essa mudança é marcada por retrocessos em relação a valores que se supunha amplamente compartilhados pela comunidade internacional. Entre eles preservação da paz e segurança internacionais, proteção dos direitos humanos, não proliferação de armas nucleares e integração econômica e comercial.

Esses valores marcaram, em teoria, a ordem internacional construída após a Segunda Guerra Mundial. Nas décadas que se seguiram, inúmeros acordos e instituições internacionais foram estabelecidos com o objetivo de impulsionar essas pautas e permitir um avanço civilizacional que evitasse a repetição das tragédias que marcaram a primeira metade do século XX.

O Direito internacional foi instrumental nesse processo. Alguns exemplos de progresso em relação aos quatro valores acima referidos são: a Carta das Nações Unidas (1945), que criou a ONU e estabeleceu uma governança para preservação da paz e segurança internacionais; a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e outros 70 tratados de direitos humanos que se seguiram, que permitiram o surgimento e consolidação do direito humanitário internacional; a Convenção para a Punição e Prevenção do Crime de Genocídio (1948), que definiu genocídio como crime e impôs a obrigação de preveni-lo e puni-lo; as Convenções de Genebra (1949), complementadas pelo Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (1998), que previram punição para crimes de guerra e crimes contra a humanidade; o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (1970), que procurou conter a proliferação nuclear e criou a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) para monitorar o comportamento dos países na área nuclear; e a celebração do Acordo Geral sobre Comércio e Tarifas – GATT (1947) e as rodadas de liberalização comercial que se seguiram até a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC) em 1994, multiplicando os fluxos comerciais e aumentando a interdependência entre os países.

Todas essas realizações prometiam estabelecer uma ordem (ou organização do mundo) baseada em regras, em que os conflitos seriam evitados ou, quando inevitáveis, administrados de forma a reduzir os danos e responsabilizar os que cometessem crimes de guerra. O que estamos vendo hoje indica que esse sistema tem falhado e é não só legítimo, mas também necessário, perguntar-se por quê.

Uma possível explicação é que essa ordem, ao mesmo tempo que trouxe benefícios, continha as sementes da relativa desordem que o mundo vive atualmente.

Primeiro, porque ela nunca foi verdadeiramente igualitária, em que pese ter propagado os princípios da igualdade soberana dos Estados nacionais e da universalidade dos direitos humanos. A outorga de poder de veto no Conselho de Segurança às “potências” de 1945, que permite paralisar o órgão por decisão de qualquer um entre cinco países, e não conferir força vinculante a decisões da Assembleia Geral da ONU, é o exemplo mais eloquente. Nos últimos dois anos, isso impossibilitou qualquer resolução sobre a guerra na Ucrânia e impediu decisões para estabelecer um cessar fogo em Gaza e para admitir a Palestina como membro pleno da ONU.

Em segundo lugar, as regras foram aplicadas de forma seletiva. Alguns eram forçados (inclusive pela força) a segui-las, enquanto se tolerava sua violação sistemática por outros. Um exemplo é a persistência da ocupação ilegal dos territórios palestinos desde 1967, em violação ao direito internacional, o que está na origem dos infortúnios tanto dos palestinos quanto dos israelenses. Outro exemplo é a rigorosa aplicação das regras de não proliferação nuclear a alguns países, enquanto se tolerou que outros desenvolvessem arsenais nucleares à margem do regime internacional de não proliferação.

Em terceiro lugar, essa ordem internacional foi parcial. Ela promoveu avanços, mas encontrou limites sempre que poderia representar uma ameaça aos interesses dos países mais poderosos. Prevaleciam interesses específicos sobre os valores supostamente universais. EUA, China, Rússia e outros, por exemplo, não aderiram ao Tribunal Penal Internacional (TPI) para não terem que entregar nacionais acusados de crimes de guerra ou crimes contra a humanidade. Uma convenção da ONU para a proibição total de armas nucleares adotada em 2017 e assinada por 93 países, incluindo o Brasil, foi boicotada pelas potências nucleares e pelos seus aliados (como os integrantes da OTAN), em um sinal de recusa de superar a lógica da contraposição que marcou a guerra fria.

Em função dessas disfunções e de suas consequências, por vezes trágicas, é legítimo perguntar: o direito internacional ainda tem função relevante a desempenhar? A resposta é sim. Por um simples motivo: o direito é um elemento incontornável, seja na discussão sobre os problemas que o mundo enfrenta, seja para encontrar e implementar soluções.

O Direito internacional está no centro das discussões sobre os conflitos e crises internacionais. A invasão da Ucrânia é analisada, criticada e justificada (pela Rússia) com base em argumentos jurídicos. Israel é questionado pelas suas ações em Gaza e pelas consequências da ocupação dos territórios palestinos com ações na Corte Internacional de Justiça (CIJ) fundadas no direito internacional. O controle de armas e o desarmamento são buscados por meio de acordos internacionais. Medidas de limitação do comércio internacional, incluindo as adotadas por razões geopolíticas, têm a sua legalidade tanto questionada quanto justificada à luz das regras internacionais.

Em todas essas questões, os países se sentem obrigados a buscar legitimação para suas condutas no direito. Integridade e inviolabilidade do espaço territorial e das fronteiras; legítima defesa individual ou coletiva; autodeterminação dos povos; caracterização do genocídio ou outros crimes; violações do direito humanitário internacional e outras obrigações; restrições ao livre comércio por razões de segurança nacional ou outras; são todos conceitos jurídicos que necessariamente informam as discussões sobre as controvérsias internacionais, ainda que nem sempre conduzam a soluções com a eficácia ou celeridade desejáveis.

Assim, mais do que útil, o direito internacional continua sendo essencial no enfrentamento dos grandes desafios internacionais. A governança e as regras fornecidas por esse direito podem parecer inadequadas ou insuficientes para lidar com certos conflitos; mas a solução, para evitar uma desordem total, está em reformar a governança global e reforçar o compromisso com o Direito internacional e não em sucumbir à descrença sobre sua utilidade.

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