Economia

Vaca Muerta, Chat GPT e BNDES

Autor
Joisa C. Dutra
Data

Resolvi testar o potencial do ChatGPT. Pensei em uma questão difícil. Inspirada pela declaração do presidente Lula sobre uma possível liberação de recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para a construção de um trecho do gasoduto ligando a bacia de Vaca Muerta ao Brasil, perguntei se o Banco deveria financiar o projeto.

Depois de alguns segundos, o programa mostrou seu veio de economista. Respondeu que a questão era complexa e que dependeria de uma variedade de aspectos. Os benefícios incluem a segurança do suprimento e talvez impacto positivo na atividade econômica na região. Mas meu “amigo digital” apontou também alguns riscos: incerteza quanto à estabilidade econômica da Argentina e a possibilidade de mudanças políticas e regulatórias que afetassem o projeto. Alertou ainda para os elevados riscos e longo payback.

Meio insatisfeita, usei a opção “regenerate response”. O resultado foi mais ou menos o mesmo, acrescido de um comentário final: seria necessário fazer análise detalhada dos custos e benefícios para determinar se o BNDES deveria ou não financiar o projeto, “and it would be a decision made by the BNDES board of directors.” 

Em linhas gerais concordamos, o que me gerou dúvidas quanto a meu futuro como colunista. 

Pensei em alguns elementos importantes a serem considerados na decisão, que abordo neste artigo.

O novo governo brasileiro tem enfatizado o desejo de promover integração energética no Cone Sul. Esse tema não é inédito: a América Latina é bem-dotada de recursos energéticos, inclusive renováveis, e com grande potencial de crescimento de mercado.  O Brasil já investiu bastante em infraestruturas essenciais para nossa segurança energética. Alguns exemplos são a usina hidrelétrica de Itaipu e o Gasoduto Bolívia-Brasil (GASBOL). Em ambos os casos, não contávamos com arcabouço regulatório capaz de viabilizar integração energética mais profunda. Não se cogitava nem se buscava integração de mercados. Foram concebidas em um modelo clássico de gestão de capacidade - mais do que gestão de riscos - que visava sobretudo promover, sem necessariamente já contar com ancoragem na demanda. O mundo hoje é diferente.

Problemas de riscos políticos levaram não raro a conflitos e ameaças de segurança de suprimento ao longo da vida útil desses ativos. Nossas relações comerciais com a Argentina também trazem exemplos de riscos políticos que comprometem o retorno dos investimentos. Esse é o caso das duas interconexões elétricas Garabi I e II. Trata-se de duas estações conversoras de frequência de 50/60 Hz, que contam com capacidade total de 2200 MW, divididas em blocos de 550 MW, mais 740 km de linhas de transmissão. Foram implantadas na premissa de que a geração termelétrica a partir do gás argentino adicionaria garantia física ao sistema elétrico brasileiro.

Dificuldades no fornecimento de gás da Argentina comprometeram a capacidade de lastrear os contratos de importação e exportação de energia elétrica. Como resultado, essas infraestruturas de intercâmbio sofreram redução de garantia física – na prática, um write-off.  Ao longo do tempo, as instalações voltaram a se tornar necessárias, principalmente para o enfrentamento de crises internas. Para garantir sua disponibilidade ao sistema elétrico, a partir de 2011 a remuneração dos serviços foi estruturada de modo a integrar a base de ativos de transmissão do grid. Essa solução regulatória permitiu repasse de custos para o consumidor de eletricidade no Brasil, que nem percebeu. Mas paga a conta. E nem o investidor se beneficiou tanto assim, pois essa incerteza tem consequências.

O prazo da concessão desses ativos expirou em junho de 2020 (Garabi I) e julho de 2022 (Garabi II), com o fim dos contratos. Para garantir a continuidade, o Ministério de Minas e Energia designou a concessionária Enel CIEN como operadora. A falta de decisão comprometia – quase inviabilizava – a realização dos “investimentos adicionais necessários à manutenção das condições operativas dos ativos no curto e no longo prazo.” O desfecho se deu recentemente, com o leilão de transmissão realizado em dezembro último. A Taesa venceu a disputa e parte da receita destina-se a indenizar a antiga concessionária (R$ 885,9 milhões).

O caso das conversoras de frequência Garabi I e II evidencia problemas atuais e sinaliza preocupações futuras. E que também aparecem na relação com a Bolívia. Neste caso, a falta de investimentos compromete não apenas fornecimento atual, mas principalmente as perspectivas do porvir. As projeções são de que o país andino passe de exportador a importador de gás natural.

Para além dos riscos políticos, a transição energética coloca riscos adicionais para a remuneração dos investimentos em óleo e gás, principalmente para infraestruturas como novos gasodutos de grande porte. Os chamados riscos de transição comprometem a capacidade desses ativos remunerarem investimentos, dando origem a stranded costs. No caso, o stranding representa a queda nas expectativas futuras de lucros a partir do capital investido como resultado de mudança de política e/ou mudança tecnológica.

Semineniuk e coautores estimam perdas para investidores em consequência de potencial de stranded assets na indústria de combustíveis fósseis na trajetória rumo à descarbonização. Em nosso país, avalia-se que essas perdas sejam maiores para ativos de petróleo. Mas as perspectivas de investimentos em redes de gasodutos podem mudar esse quadro. Para atender à demanda no Brasil, por exemplo, seriam necessários cerca de U$ 1,5 bilhão de capital além dos U$ 1,5 bilhão para o gasoduto Nestor Kirchner na Argentina.

Um terceiro desafio para o investimento seria a colocação do gás no mercado nacional. Por mais que se fale que diversificação é bom – o que é verdade – resolver o risco de offtake (demanda) não é simples.  Mesmo com o novo marco regulatório do gás (Lei 14.134/21), não está fácil promover o desenvolvimento de um mercado competitivo desse recurso – objetivo de política da referida reforma. Na prática, o gás ainda não consegue chegar aos mercados industriais e elétrico a preço que não comprometa a competitividade e a capacidade de pagamento dos usuários. Como a equação final de um gás natural vindo da Argentina, hoje não competitivo, acrescido dos custos de novas redes, vai contribuir para mudar esse quadro?

Os temas aqui abordados nem de longe exaurem a questão. Cabe ao Board do BNDES a decisão quanto a financiar o gasoduto Nestor Kirchner, uma vez que consiga sopesar custos e benefícios. A pergunta colocada para o Chat GPT ter ficado sem resposta já atesta a complexidade da tarefa. Boa sorte!

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