O tic-tac da ansiedade climática
Quem nunca assistiu aquele filme em que o mocinho se empenha em uma missão impossível para impedir que a bomba relógio exploda? A cena de um cronômetro em contagem regressiva se intercambia com um roteiro recheado de armadilhas e tensões, até que... ele consegue desarmar a bomba com o cronometro marcando alguns décimos de segundos! Ufa! Em poucos minutos o coração volta ao seu batimento normal. Tão impregnada em nossas vidas está essa esperança em um salvador, seja humano ou tecnológico, que no último momento vai parar o relógio, que temos dificuldade em conceber ações coletivas diante de crises complexas, como a emergência climática. Porém, ela não funciona como uma bomba-relógio!
A crise atual se aproxima melhor da referência literária Filhos da Esperança, de P. D. James, analisada por Mark Fisher em o Realismo Capitalista. O autor aponta que nesse clássico da literatura distópica “a catástrofe não é iminente e tampouco já aconteceu”, ela está sendo vivida em um mundo que vai se desmoronando lentamente e em que o novo já não pode ser criado, nem mesmo imaginado. Em um contexto em que qualquer ação parece inútil, emerge a questão sobre a possibilidade de perpetuação de uma civilização em que os jovens já não são mais capazes de criar. O mal-estar diante de um problema de dimensão planetária se traduz em ansiedade, desespero, paralisia, depressão.
A relação entre sustentabilidade e saúde não é nova. Desde questões ocupacionais, passando pela qualidade do ar, da água, do solo, do uso de pesticidas, resíduos perigosos e radioativos, os impactos do modo de produção e consumo sobre meio ambiente têm sempre retornado ao ser humano na forma de danos à saúde. As mudanças climáticas são um divisor de águas nesse processo. Eventos extremos como ondas de calor, secas e inundações modificam os habitats naturais, forçando animais a migrarem para novas áreas. Essa movimentação aumenta as chances de contato entre espécies, incluindo a humana, e facilita a transmissão de patógenos. Além disso, as ameaças climáticas influenciam a distribuição de vetores, como mosquitos e carrapatos, expandindo a área geográfica de doenças como a malária e a dengue. Doenças crônicas, cardiovasculares e respiratórias, também são acentuadas por altas temperaturas e poluição do ar.
Na linha das notícias aterradoras sobre o futuro, o relatório “Qualificando o Impacto das Mudanças Climáticas na Saúde Humana”, lançado pelo Fórum Econômico Mundial em janeiro de 2024, aponta que a mudança do clima pode causar até 14,5 milhões de mortes adicionais e perdas econômicas da ordem de 12,5 trilhões de dólares ao redor do mundo até 2050. A pressão sobre os sistemas de saúde será imensa, somando 1,1 trilhão de dólares em custos extras. Entre os impactos projetados, 79% relacionam-se a condições de saúde que se desenvolvem após os eventos climáticos e afetam o bem-estar de indivíduos e comunidades. Ainda, desastres climáticos e o sofrimento gerado por eventos como ondas de calor extremas e o processo de degradação dos ecossistemas exacerbam os riscos para aqueles com condições de saúde mental preexistentes, aumentando as taxas de suicídio e internações hospitalares.
Crianças estão particularmente vulneráveis, seja por seus corpos e mentes estarem em desenvolvimento, seja pela dependência de seus cuidadores e pelo bloqueio que eventos climáticos extremos impõem a espaços abertos e à interação social. Segundo a Unicef, já hoje quase todas as crianças enfrentam pelo menos um choque climático por ano e 99% das crianças estão expostas a pelo menos um risco climático ou ambiental, a maior parte delas residentes nos países de baixa e média rendas. O bem-estar psicológico e a saúde mental de crianças e jovens são desafiados tanto pela ameaça climática, na iminência do evento climático, quanto pelos impactos vividos.
Assim, as novas gerações, que herdarão as consequências mais duras das mudanças climáticas, estão experimentando um aumento significativo de ansiedade, estresse e outros problemas de saúde mental, conhecidos como ansiedade climática ou ecoansiedade. O conceito é definido pela Associação Americana de Psicologia (APA) como um medo crônico da destruição ambiental que varia de estresse leve a transtornos clínicos como depressão, ansiedade, transtorno de estresse pós-traumático, e pode envolver efeitos intergeracionais, em especial quando os danos ambientais envolvem a perda de um modo de vida ou cultura. O sofrimento de crianças e adolescentes associa-se tanto às experiências da emergência climática atual quanto à impossibilidade de imaginar futuros alternativos a distopias socioambientais.
Se o futuro da civilização humana como conhecemos hoje depende de ações transformadoras e estruturais - transição ambiciosa para uma economia de baixo carbono junto à implementação de medidas para a adaptação de populações, cadeias produtivas, ecossistemas e infraestruturas a um planeta mais quente -, apenas em um filme ficcional seria possível que toda uma geração física e psicologicamente combalida pela emergência climática possa cumprir tal missão. Políticas climáticas e de saúde precisam ser instituídas agora, de forma articulada, para seus resultados possam proteger a saúde, o bem-estar e a capacidade humana de conceber e construir futuros disruptivamente diferentes.
Historicamente, a saúde mental figura marginalmente nas políticas climáticas globais. Foi a partir da segunda década do século 21 que os impactos das mudanças climáticas nessa área começam a ser reconhecidos em relatórios científicos e resoluções de saúde. Mais recentemente, a inclusão formal da saúde mental nas negociações e compromissos climáticos e nas resoluções de saúde e desenvolvimento comunitário refletem a crescente conscientização sobre o fato de que os impactos das mudanças climáticas vão além da integridade e saúde física e alcançam o bem-estar psicológico e os afetos humanos.
Em seu estudo “Análise de saúde em 2023 a partir das contribuições nacionalmente determinadas e estratégias de longo prazo”, a Organização Mundial de Saúde (OMS) aponta a necessária integração entre políticas climáticas e de saúde para salvar vidas, prevenir e lidar com as doenças disparadas e acirradas pela mudança do clima. Atualmente, apenas meio por cento do financiamento climático multilateral é investido em projetos voltados à saúde, isso é, que se propõem a proteger ou melhor a saúde humana diante das ameaças climáticas.
Além de crescer os investimentos, é importante que parte desse recurso seja dedicado à preparação dos sistemas de saúde para o atendimento de crianças e jovens sob novos contornos de estresse e angústia, que podem chegar a se manifestar em formas mais graves, sustentadas ou recorrentes de doenças mentais. Nesse sentido, é fundamental capacitar o quadro de profissionais para lidar com essa realidade, mas também desenvolver novos modelos de cuidados que priorizem acessibilidade, utilizando-se, por exemplo, de tecnologias da informação e comunicação; prevenção, por meio do reconhecimento e atuação sobre indícios iniciais de sofrimento e transtornos; e integração dos serviços de saúde a outros sistemas e equipamentos públicos e privados, particularmente os de educação e assistência social.
Do lado do sistema de saúde, é preciso investir em pesquisas sobre as implicações dos cenários climáticos para as estratégias, operações e atendimento dos equipamentos públicos e privados. Identificar e sistematizar boas práticas, a partir de experiências nacionais e internacionais, ampliar e melhorar o atendimento às populações em situações de vulnerabilidade e o apoio psicológico contínuo a crianças e adolescentes então entre as frentes de atuação prioritárias para os próximos anos. Soluções precisarão ser desenvolvidas por meio da colaboração entre setores público e privado e com participação ativa das populações atendidas, entre as quais crianças e adolescentes, para viabilizar a implementação e ganho de escala e garantir a aderência às realidades e necessidades locais.
À agenda de mudanças climáticas, por sua vez, cabe fortalecer a abordagem da adaptação transformacional, que preconiza mudanças sistêmicas nos processos e organizações sociais e econômicas a fim de melhorar a qualidade de vida das pessoas de forma equitativa e sustentável. A proteção integral e a garantia de direitos e oportunidades de desenvolvimento de crianças e adolescentes compõem a espinha dorsal dessa abordagem. A ansiedade climática, entre outros sofrimentos causados ou acentuados pela crise climática, se não devidamente reconhecida, acolhida e tratada, coloca em risco qualquer possibilidade de desenvolvimento sustentável ao minar as condições necessárias para uma vida e uma sociedade saudáveis, colaborativas e produtivas.
Se a bomba desse filme-realidade não é relógio, o tempo não se nega a correr. Em Filhos da Esperança a esterilidade pode ser lida metaforicamente como o fim da criação do futuro diante da percepção de que ele nada mais pode ser do que repetição e recombinação do que está posto. O cuidado integral da saúde mental será um divisor de águas para que distopias como essa não sejam o final do filme, para que alternativas que escapem, de um lado, à normalização da crise e, de outro, à fé de religiões e superstições sejam concebíveis.