Autoridade Climática e os riscos da governança regulatória

A criação de um órgão técnico e independente não pode significar que os cidadãos estarão alijados das decisões que afetam suas vidas.

Direito
18/10/2024
Péricles Gonçalves Filho

Em resposta aos incêndios que assolam boa parte do Brasil, o presidente Lula anunciou a criação de uma Autoridade Climática. Especialistas e membros do governo federal apressaram-se em afirmar que, para alcançar sucesso, o órgão precisa ter perfil técnico e gozar de autonomia em relação à esfera política. Corroborando esse discurso tecnocrático, o próprio presidente Lula afirmou que o órgão contará com um Comitê Técnico-Científico. São legítimas as preocupações com a qualidade técnica e com a governança de um órgão que cuidará de temas tão sensíveis para as presentes e futuras gerações. Mas a busca por uma atuação baseada na ciência e livre de influências externas não pode significar que os cidadãos estarão alijados das decisões que afetam suas vidas.

Discursos tecnocráticos preconizam que, diante de riscos que dependem de análises científicas (como os climáticos), o Estado deve assegurar aos cientistas e experts um espaço de atuação livre de interferências externas. Vista como confiável e até infalível, a ciência oferece resposta a questões básicas do mundo natural (qual é o diâmetro da Terra?) e permite o estabelecimento de relações de causalidade (quais substâncias são cancerígenas?), desempenhando, assim, um papel de crescente importância para o sucesso da atuação do Estado como regulador de riscos. O problema é que tais discursos normalmente consideram a percepção das partes afetadas e do público em geral como “receios infundados”, com potencial de distorcerem as reais prioridades do regime regulatório, não podendo, por essas razões, contaminar a atividade científica desenvolvida pelo Estado.

Essa é uma visão reduzida tanto da ciência quanto do conhecimento leigo, pois desconsidera a fluidez das fronteiras estabelecidas entre os respectivos territórios e as ricas interações entre eles. Acima de tudo, essa é uma visão que desconsidera a demanda contemporânea por uma maior accountability da ciência utilizada para fins regulatórios.

O sentido da expressão accountability está normalmente associado ao dever da Administração Pública de prestar contas de suas atividades ao seu constituinte: a sociedade. No contexto da ciência utilizada para fins regulatórios, accountability opera em duas dimensões: em uma primeira dimensão, se refere ao dever de cientistas e experts de divulgarem as informações relacionadas ao conhecimento científico produzido para fins regulatórios, incluindo os impactos que esse conhecimento produz na sociedade, de modo a viabilizar o seu controle pelas partes afetadas e pelo público em geral; em uma segunda dimensão, pressupõe que as opiniões e reações das partes interessadas e do público em geral devem ser levadas em consideração na produção desse conhecimento científico, não podendo ser tachadas como mera irracionalidade ou ignorância. Em ambos os contextos, quanto maior for o impacto das práticas científicas sobre o tecido social, mais significativa deve ser a sua accountability.

Desconsiderar a noção de accountability traz, pelo menos, dois prejuízos à atuação do Estado como regulador dos riscos climáticos. Em primeiro lugar, reduz-se a legitimidade democrática do Estado. Riscos climáticos não são algo que existe “lá fora”, esperando para ser regulado por um regime de governança neutro e com pretensão de universalidade. Riscos climáticos são uma representação humana do mundo natural, que se opera por meio de lentes moldadas pela história, política e cultura. Cada forma de vida social, portanto, desenvolve o seu próprio “portfólio de risco”, na feliz expressão de Mary Douglas e Aaron Wildavsky. Aspecto de nossa realidade ilustra bem o ponto. No Brasil, mais de 200 milhões de doses de dipirona são comercializadas por ano, ao passo que a substância é proibida em países como Estados Unidos, Japão e Austrália. Os gaps de incerteza científica são preenchidos por julgamentos normativos que, em um regime tecnocrático, acabam sendo feitos de maneira insulada por cientistas e experts.

Essa mesma natureza indeterminada caracteriza os riscos climáticos: trata-se de uma ameaça cientificamente demonstrada e possivelmente catastrófica; porém não é possível definir o tempo, o local, a gravidade e a distribuição de suas consequências. A questão que surge é: por que conferir, exclusivamente, aos cientistas e especialistas os julgamentos normativos sobre tais questões se, no fim do dia, quem sofre essas consequências é a sociedade? A criação de um poder político insulado pode, assim, impactar os ideais democráticos que norteiam a atuação da Administração Pública no Brasil.

Em segundo lugar, discursos tecnocráticos geram um déficit na eficácia da atuação do Estado. Ao lidarem com os riscos climáticos, formuladores de políticas e reguladores recorrem ao conhecimento científico com o objetivo de obterem resposta para aquilo que consideram ser o problema regulatório. Nesse sentido, a participação das partes afetadas e do público em geral auxilia as autoridades a delimitarem o problema regulatório (isto é, a definirem o que está no centro das preocupações da sociedade). Sem essa articulação, a ciência pode acabar sendo chamada para responder questões adjacentes, o que pode gerar desconfiança no trabalho realizado por cientistas e autoridades e produzir soluções regulatórias deficientes e de baixa adesão.

Em tal contexto, não parece fazer sentido regular os riscos climáticos sob uma perspectiva tecnocrática. Ao estruturar a atuação da Autoridade Climática, os formuladores de políticas devem evitar a tentação de recorrer a formulações que transformam a ciência na panaceia dos riscos climáticos. Discursos tecnocráticos podem fornecer às autoridades públicas rotas de fuga de suas responsabilidades no curto prazo. Porém, a estruturação de um modelo regulatório que não dialogue, de maneira contínua e informada, com o meio social poderá causar impactos significativos, quiçá irreversíveis, sobre as pessoas cujas opiniões foram consideradas como mera irracionalidade ou ignorância.

*As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional da FGV.

Autor(es)

  • Péricles Gonçalves Filho

    Professor pesquisador da Escola de Direito do Rio de Janeiro (FGV Direito Rio), onde também atua como coordenador de projetos institucionais, mestre e doutorando em Direito da Regulação pela Escola, research fellow (2022-2023) na Harvard Kennedy School e visiting researcher (2018) na Universidade da Califórnia, Irvine.

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