Ciência ou democracia?

Quem tem a última palavra na regulação de riscos?

Direito
29/07/2024
Péricles Gonçalves Filho

Ciência sozinha não vai resolver crise climática. Sob esse título, a Folha de São Paulo veiculou recentemente uma entrevista com Michael Sandel, professor de filosofia política da Universidade de Harvard e autor de O Descontentamento da Democracia. Sandel critica o fato de que, nas sociedades democráticas contemporâneas, a política passou a ser dominada por um discurso tecnocrático, que interdita a participação dos cidadãos nas decisões que afetam as suas vidas. Para o autor, esse mesmo discurso tecnocrático foi observado na pandemia: as autoridades afirmavam que estavam apenas seguindo a ciência (“um jeito de escapar das responsabilidades”), mas a ciência não podia determinar se as escolas deveriam ser fechadas e por quanto tempo (“esse era um julgamento político”). Sandel afirma que, no caso da política de mudança climática, “a ciência precisa informar as decisões que vamos tomar, mas essas medidas precisam ser debatidas entre as pessoas implicadas nelas”, uma vez que “isso envolve negociações, questões distributivas, um debate sobre quem vai pagar o preço da transição para a economia verde...”[1]

As considerações do filósofo Sandel remetem a um debate central no campo da regulação de riscos: no exercício de sua função regulatória, o Estado deve basear sua decisão na ciência ou em valores? Deve levar em consideração a palavra dos experts ou dos cidadãos? É provável que esse debate se intensifique nas sociedades democráticas contemporâneas, à medida em que a ciência assume um papel cada vez mais relevante na regulação de riscos em questões envolvendo a saúde, a segurança e o meio ambiente. Estudiosos europeus e norte-americanos têm se dedicado a debater o tema com profundidade, oferecendo diferentes perspectivas e reflexões que podem ser significativamente úteis para a realidade brasileira.

Elizabeth Fisher,[2] professora da Universidade de Oxford, afirma que a dicotomia ciência vs. democracia acaba por ignorar o fato de que a avalição dos riscos tecnológicos é uma atividade desempenhada pela Administração Pública. Sendo assim, as disputas sobre riscos tecnológicos não são propriamente disputas sobre ser a ciência ou a democracia a melhor maneira de regular riscos, mas sim sobre qual deveria ser o papel e a natureza da Administração no exercício dessa função.

Ao enquadrar o debate sob essa perspectiva, Fisher apresenta os seus dois paradigmas de Administração Pública: de acordo com o paradigma racional-instrumental, a Administração Pública é um instrumento do Legislativo e tem como missão obedecer à vontade democrática expressa na legislação. Aqui a Administração Pública analisa o risco por meio de metodologias racionais que conferem objetividade à avaliação das informações, o que acaba por restringir a discricionariedade dos agentes públicos.

Já o paradigma deliberativo-constitutivo preconiza que a Administração Pública é uma instituição semi-independente e permanente que goza de amplos poderes discricionários para endereçar as incertezas e complexidades envolvidas no processo de avaliação de riscos tecnológicos. Para este paradigma, a natureza complexa dos riscos tecnológicos simplesmente impede que a sua avaliação seja realizada a partir de um modelo rígido e pré-definido de fórmulas metodológicas.

Nos Estados Unidos, dois autores se destacam na defesa de abordagens técnicas de regulação de risco. Cass Sunstein,[3] professor da Universidade de Harvard e ex-Administrador do Office of Information and Regulatory Affairs – OIRA, afirma que a tomada de decisões de risco baseada na percepção do público é caracterizada por uma série de falhas que levam a escolhas irracionais e ineficientes. Por outro lado, a tomada de decisões de risco baseada em análises científicas equilibra os custos e os benefícios. Sunstein, assim, defende um tipo de Estado de custo-benefício, que desconsidera as visões leigas ao mesmo tempo em que atribui “grande importância ao conhecimento técnico e à ciência sólida”, em um modelo que traduz “um apelo para que os tecnocratas desempenhem um papel importante no processo de redução de riscos”. Segundo o autor, nas divergências entre os especialistas e o público leigo, “os especialistas geralmente estão certos e as pessoas comuns geralmente estão erradas”. Especialistas, afirma Sunstein, podem cometer erros e até ser tendenciosos, porém, justamente por serem especialistas, “é mais provável que estejam certos” em comparação com as pessoas leigas.

Também defendendo uma abordagem tecnocrática, Stephen Breyer,[4] professor da Universidade de Harvard e ex-ministro da Suprema Corte norte-americana, argumenta que uma das falhas da regulação de riscos é a seleção aleatória de agenda: os receios irracionais do público distorcem as prioridades nacionais. Para Breyer, somente um processo regulatório despolitizado mostra-se capaz de produzir resultados melhores e gerar maior confiança. Isso torna necessário promover mudanças institucionais, que incluiriam a criação de um seleto e centralizado grupo administrativo, dotado de prestígio e autoridade, insulado politicamente e com competência transversal para produzir um sistema coerente de regulação de risco. Esse grupo administrativo se beneficiaria de certas virtudes da burocracia, tais como racionalização, expertise, insulamento e autoridade. Segundo o autor, o insulamento desse grupo não prejudicaria a sua legitimidade, que advém do sucesso que esse grupo administrativo alcançaria na sua missão de produzir decisões mais racionais. Breyer acrescenta que a confiança nas instituições públicas não decorre apenas da percepção do público de que elas são abertas à participação popular, mas também de sua capacidade de cumprir a missão com sucesso. Como exemplo, Breyer cita a confiança que a maioria dos norte-americanos possui nas Forças Armadas, que “não é uma instituição aberta, mas que tem cumprido com sucesso sua missão”.

Abordagens construtivistas enxergam o risco de maneira diametralmente oposta. Para a antropóloga britânica Mary Douglas e para o cientista político norte-americano Aaron Wildavsky,[5] riscos são artefatos sociais fabricados por grupos ou instituições sociais, que avaliam a aceitabilidade dos riscos com base em um viés cultural: cada forma de vida social desenvolve o seu próprio “portfólio de risco”. Considerando que o indivíduo encontra-se inserido em sua própria cultura, ele só pode perceber o ambiente à sua volta e realizar julgamentos sobre o risco por meio de lentes fabricadas culturalmente. Regular riscos, de acordo com Douglas e Wildavsky, envolve, em primeiro lugar, uma escolha entre as instituições sociais. “Se a seleção de risco é uma questão de organização social, o gerenciamento de risco é um problema organizacional”. Os autores defendem a importância de se adotar uma abordagem baseada na resiliência: “Quando a única certeza é que não conseguiremos prever dificuldades importantes que a nação enfrentará no futuro, a diversidade e a flexibilidade podem ser as melhores defesas”. Para os autores, “[c]omo não sabemos quais riscos corremos, nossa responsabilidade é criar resiliência em nossas instituições”.

Outra abordagem construtivista vem de Sheila Jasanoff, professora da Universidade de Harvard e liderança global em Science, Technology and Society – STS. Riscos, para Jasanoff,[6] “não refletem diretamente a realidade natural, mas são refratados em todas as sociedades através de lentes moldadas pela história, política e cultura”. Ou seja, riscos são sempre uma representação humana da realidade: o que se sabe sobre o mundo é uma formação cultural e social. Assim, fatores culturais moldam a forma como as sociedades interpretam os dados científicos e resolvem as controvérsias que surgem. Em seus estudos comparados[7], a autora evidencia como nações que ostentam características relativamente parecidas divergem em suas formas de abordar o risco. Tal realidade, segundo Jasanoff, torna necessário promover reformas nos regimes regulatórios de risco com o objetivo de se dedicar uma maior atenção às conexões entre risco e cultura e de se estabelecer “maior negociação e engajamento das partes interessadas para que diferentes perspectivas sobre o risco possam ser descobertas e acomodadas”.

Diante de abordagens tão distintas e até competidoras entre si, o que parece certo é que não se deve alimentar qualquer utopia ou ingenuidade a respeito do tema. Modelos tecnocráticos prometem uma atuação pautada na expertise, na “ciência sólida”, no uso de metodologias analíticas que viabilizam uma análise racional e objetiva, mas isso à custa de uma maior interação com as partes afetadas e com o público em geral, o que vai na contramão de uma demanda global[8] por uma  maior abertura democrática da regulação. Modelos construtivistas, por outro lado, reconhecem a importância de se promover uma maior articulação entre os experts e as partes afetadas e o público em geral, mas a adoção de mecanismos de participação social suscita questionamentos quanto às barreiras motivacionais e de informação que podem impedir que o público participe efetivamente de processos regulatórios, quanto à eficácia dos mecanismos de participação social em relação ao tipo específico do objeto regulado e quanto ao pesado ônus que uma ampla participação social pode representar para o regulador, que ficaria obrigado a analisar individualmente e eventualmente responder a todas as contribuições recebidas.

Inexistindo uma estrutura perfeita para a análise e gerenciamento de riscos, os tomadores de decisão, ao desenharem e implementarem sistemas regulatórios em suas jurisdições, devem estar atentos aos variados aspectos que permeiam esse debate entre ciência vs. democracia na regulação de riscos. Um ponto de partida salutar pode ser o reconhecimento de que não há propriamente um antagonismo entre ciência e democracia. Ciência sólida é fundamental para regular riscos; a participação das partes afetadas e do público em geral também é. A questão central, portanto, parece residir em como estruturar um regime regulatório que, em vez de pressupor uma perspectiva antagônica e excludente (ciência ou democracia), reconheça que ambas as dimensões são essenciais para uma regulação de riscos legítima e eficaz (ciência e democracia).


[2] FISHER, Elizabeth. Risk Regulation and Administrative Constitutionalism. 1st ed. Oxford Portland, Oregon: Hart Publishing, 2007.

[3] SUNSTEIN, Cass. Risk and Reason: safety, law, and the environment. New York: Cambridge University Press, 2002.

[4] BREYER, Stephen G. Breaking the Vicious Circle: toward effective risk regulation. Cambridge: Harvard University Press, 1993.

[5] DOUGLAS, Mary; WILDAVSKY, Aaron. Risk and Culture: an essay on the selection of technological and environmental dangers. Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1983.

[6] JASANOFF, Sheila. The songlines of risk. Environmental Values, 8, 135–152, 1999.

[7] JASANOFF, Sheila. Risk management and political culture. New York: Russell Sage Foundation, 1986.

[8] Veja, a propósito, o documento Regulatory Policy Outlook 2021, publicado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Disponível em: https://doi.org/10.1787/38b0fdb1-en. Acesso em: 31 mai. 2023.

*As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional da FGV.

Autor(es)

  • Péricles Gonçalves Filho

    Professor pesquisador da Escola de Direito do Rio de Janeiro (FGV Direito Rio), onde também atua como coordenador de projetos institucionais, mestre e doutorando em Direito da Regulação pela Escola, research fellow (2022-2023) na Harvard Kennedy School e visiting researcher (2018) na Universidade da Califórnia, Irvine.

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