A compra do Twitter por Elon Musk e os possíveis impactos para expressão online

Liberdade de expressão é direito fundamental, mas não é absoluta, nem é plano de negócios para redes sociais.

Direito
01/06/2022
Luca Belli
Yasmin Curzi de Mendonça
Walter Britto Gaspar

 

Yochai Benkler em “The Wealth of Networks” (2006) qualificou as redes sociais como “esfera pública conectada”, chamando atenção para o crescente papel destas infraestruturas para as comunicações interpessoais, expressão de opiniões, manifestações políticas e mobilizações civis que outrora ganhavam vida apenas em determinados espaços materiais da vida pública.

Tal visão de esfera pública global, sem dúvidas cativante, precisa ser temperada com uma boa dose de realismo:  plataformas digitais são propriedades de companhias privadas, cujos modelos de negócios são baseados no estímulo da geração e do compartilhamento de conteúdo pelos usuários. O intuito principal é coletar e monetizar seus dados pessoais. Além disso, plataformas permitem a construção de outras camadas de aplicações, como jogos, anúncios ou pagamentos, que tornam essas entidades particularmente interessantes, sobretudo por concentrarem uma massa crítica de usuários.

Qual é o papel das plataformas na moderação de conteúdo online?

Neste contexto, cabe destacar que a possibilidade de controle privado sobre o conteúdo postado por usuários não é abstrata: a moderação de conteúdo é o principal asset das plataformas. A ordenação dos feeds via algoritmos, i.e., a alocação e priorização de determinados tipos de conteúdo em seus sistemas de recomendação, é o elemento que torna as plataformas mais interessantes e cativantes aos usuários. Por esta razão, o funcionamento de tais algoritmos é protegido enquanto segredo comercial das empresas, o que leva a uma grande opacidade sobre o papel destes no impulsionamento de conteúdos nocivos ou na ocultação de conteúdos críticos.

Casos conhecidos de restrição indevida de discursos lícitos são a “ponta do iceberg” que conseguimos enxergar quando ações de remoção, suspensão e filtragem são tomadas por plataformas e contestadas (ou, ao menos, notadas) pelos usuários. Técnicas de retirada de engajamento, ocultação do feed e não recomendação são extremamente comuns e representam um impeditivo para que a sociedade civil possa ter alguma forma de controle sobre como as plataformas coordenam o fluxo comunicacional e informacional.

Cientes do poder político e econômico concentrados nas mãos destas empresas privadas, legislações têm surgido em diversos países para coibir a produção de danos a usuários e sociedade (divulgação de conteúdos de ódio, desinformação etc.) e trazer transparência e deveres de cuidado às plataformas. Além disso, os representantes das plataformas mais relevantes, i.e., Google, Meta, Twitter e, mais recentemente, o TikTok, têm buscado firmar compromissos para evitar e coibir comportamentos nocivos, a partir de seus termos de uso e da aplicação da moderação de conteúdo.

E o Twitter?

O Twitter, mais especificamente, tem procurado ao longo dos anos implementar projetos voltados à descentralização da moderação de conteúdo na plataforma e significativamente apoiado a produção de conhecimento e o desenvolvimento de pesquisas. Exemplo disto é a disponibilização de propriedades técnicas para desenvolvedores em seu programa “Twitter Developers”, que permite o acesso à Application Programming Interface (API) da plataforma.

A abertura da rede, nesse quesito, é vista com bons olhos por pesquisadores e especialistas que procuram compreender, por exemplo, a disseminação de desinformação, cyberbullying e discurso de ódio na plataforma e têm procurado formas de elucidar tais fenômenos, tanto para melhorias na moderação interna da plataforma, como para a formulação de políticas públicas de combate a tais comportamentos nocivos online.

Em essência, o debate em torno da propriedade privada das redes sociais traduz preocupações com a arquitetura do debate público. Essa arquitetura é constituída por alicerces técnicos – as linhas de código que fazem uma rede ser o que é, que ditam suas limitações e possibilidades e que refletem as escolhas de design de seus idealizadores; e políticas de conteúdo e termos de uso.

Toda rede social é marcada por essas escolhas, e o Twitter não é diferente: mesmo a limitação de caracteres configura um condicionamento do discurso, uma limitação à capacidade de expressão. Não importa que alguém queira recitar a obra completa de Shakespeare em apenas um tuíte: terá que se limitar aos 280 caracteres disponíveis. Além disso, plataformas não operam em um universo (ou metaverso) paralelo na ausência de lei, mas precisam respeitar marcos normativos que regulam em qualquer país a liberdade de expressão.

A liberdade de expressão não é direito absoluto nem online nem offline

A liberdade de expressão é direito fundamental, mas não é e nunca foi um direito absoluto, em nenhum lugar do mundo. Até países extremamente liberais, como os Estados Unidos, limitam a liberdade de expressão para proibir a circulação de conteúdos socialmente indesejáveis e.g. exploração sexual infantil, propriedade intelectual alheia, insulto, calúnia e injúria etc. Tais limites existem porque conteúdos nocivos podem ter consequências devastadoras, inclusive para a própria liberdade de expressão de minorias e exercício de direitos civis e políticos de grupos vulneráveis.

Qualquer tratado internacional (seja no âmbito da ONU ou regional) que reconhece o direito fundamental à liberdade de expressão reconhece também a possibilidade de que tal direito seja limitado, precisamente porque nenhum governo ou constituinte do mundo jamais achou desejável para a sociedade a expressão “absoluta”. Para serem lícitas e legítimas, no entanto, as limitações à liberdade de expressão devem ser necessárias e proporcionais. Ou seja, limitações existem e sempre existiram, tanto online como offline, mas o fulcro da questão é definir limitações menos restritivas e mais moldadas na base do devido processo e na primazia da lei.

Dos slogans à realidade

A ideia de liberdade de expressão "radical" é um slogan ideológico desprovido de sentido. Todo discurso é localizado, limitado pelo meio em que se encerra e o público a que se direciona, seja a praça pública, a sala de aula, o metaverso, ou a "tuitosfera".

De todo modo, o debate sobre limites à liberdade de expressão online é sensível e exige uma discussão construtiva. É importante que seus administradores possuam uma apreciação um pouco mais refinada, e não simplesmente se autodefinam “technokings”, como Musk.

Um dos maiores pontos de preocupação ensejados pela compra do Twitter por Elon Musk é o pouco que se sabe com absoluta certeza sobre suas intenções. Nem mesmo a compra é mais uma certeza, como o empresário revelou em sua timeline do Twitter recentemente. Como agente privado, o empresário não está sujeito a obrigações de transparência e prestação de contas; não precisa fundamentar suas decisões nos valores democráticos compartilhados pelas sociedades modernas; e nem mesmo precisa apresentar um plano concreto e organizado sobre o que pretende fazer – expressando-se apenas em tuítes crípticos.

Em outras palavras, não se sabe a arquitetura que pretenderá imprimir à rede. Quando o objeto de sua compra é o meio de expressão de mais de 300 milhões de usuários no mundo inteiro, esta opacidade é grave e constrange o alcance de regulações estatais.

*As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional da FGV.

Do mesmo autor

Autor(es)

  • Luca Belli

    Professor da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getulio Vargas, onde coordena o Projeto CyberBRICS  e a edição latino-americana da Computers, Privacy and Data Protection (CPDP) Conference.

  • Yasmin Curzi de Mendonça

    Professora na FGV Direito Rio, coordenadora de seu Programa Diversidade e Inclusão e Pesquisadora de seu Centro de Tecnologia e Sociedade, atuando desde 2019 com foco nas áreas de Direitos Humanos e Tecnologia, Regulação de Plataformas, Gênero e Democracia Digital. Doutora pelo IESP-UERJ, Mestre pela PUC-Rio, graduada em Direito e em Ciências Sociais pela FGV-Rio, com período de Intercâmbio Acadêmico na Université Sorbonne Paris-IV. Integrante do Comitê Nacional de Cibersegurança da Presidência da República.

  • Walter Britto Gaspar

    Pesquisador no projeto CyberBRICS do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV Direito Rio. Advogado, graduado em Direito pela FGV em 2015. Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ (2017), estudando a interface entre inovação, propriedade intelectual e acesso a medicamentos. Bolsista da Fundação Botín no Programa de Formação para a Função Pública na América Latina (2013). Pesquisador pela Fiocruz e Shuttleworth Foundation em projeto relacionado a propriedade intelectual e acesso a medicamentos (2017). Coordenador Nacional da ONG Universities Allied for Essential Medicines (2013-2016). Designer Gráfico certificado pelo Istituto Europeo di Design (2018). Autor de “O que é Creative Commons? Novos modelos de direito autoral em um mundo mais criativo”.

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