Expansão fiscal e inflação da pandemia
Como mostra a experiência internacional, mesmo em países com grande credibilidade a expansão fiscal da pandemia teve custos expressivos sob a forma de inflação. No caso do Brasil, o preço a pagar provavelmente será mais alto.
Na última coluna (“Novos Alertas Fiscais”), comentei alertas recentes de Gita Gopinath e Olivier Blanchard sobre o risco de que, diante do aumento dos gastos públicos durante a pandemia e da possível elevação da taxa de juros real de forma permanente, a trajetória da dívida pública nas economias avançadas pode se tornar insustentável.
Esta semana um artigo de Martin Wolf no Financial Times abordou exatamente esses dois alertas e a crescente probabilidade de que esses cenários negativos se materializem.
Um estudo recente de Robert Barro e Francesco Bianchi (“Fiscal Influences on Inflation in OECD Countries, 2020-2022”), professores das universidades de Harvard e Johns Hopkins, respectivamente, é particularmente relevante para este debate.
O arcabouço conceitual é baseado na teoria fiscal do nível de preços. A ideia central é que o governo se defronta com uma restrição orçamentária intertemporal, que iguala o valor real de mercado da dívida pública ao valor presente dos superávits primários reais no presente e no futuro. Caso o governo aumente suas despesas sem cortes futuros nos gastos ou aumento das receitas, o valor real da dívida pública deve diminuir, o que ocorre por meio de um aumento da inflação.
Com base nessa teoria, o trabalho utiliza ferramentas econométricas para estimar o impacto do aumento das despesas nos países da OCDE entre 2020 e 2022 sobre a aceleração da inflação que ocorreu no mesmo período. Os resultados mostram que o modelo tem elevado poder explicativo da aceleração inflacionária observada nas economias desenvolvidas no período recente.
As estimativas indicam que entre 40% e 50% do financiamento das despesas decorreu da redução do valor real da dívida pública provocada pela aceleração da inflação. Os restantes 50-60% foram financiados por meio de aumento de receitas ou reduções esperadas nos gastos futuros. Outro resultado interessante é que na Zona do Euro a inflação decorreu principalmente da despesa agregada da área monetária e não dos gastos dos países individualmente.
Embora a pesquisa de Barro e Bianchi seja focada nas economias avançadas, sua conclusão é bastante relevante para o Brasil. Nosso caso é ainda mais extremo, já que o grande aumento de gastos entre 2020 e 2022 foi financiado sem medidas compensatórias relevantes do lado da receita ou redução futura de gastos. Além disso, grande parte dessa expansão fiscal foi permanente, como o aumento da despesa do Bolsa Família de cerca de 0,5% para 1,5% do PIB.
A projeção de um déficit primário de R$ 177,4 bilhões em 2023, divulgada pelo governo federal esta semana, evidencia a gravidade da situação. Na verdade, a situação é ainda pior, já que o governo contabilizou incorretamente como receita primária a transferência de recursos do PIS/PASEP para o Tesouro no montante de R$ 26 bilhões. Utilizando a metodologia do Banco Central, que faz o cálculo oficial do resultado primário, o déficit esperado é de R$ 203 bilhões (1,9% do PIB), muito próximo do déficit autorizado pela Lei de Diretrizes Orçamentárias (R$ 213,6 bilhões).
Outro ponto preocupante é o fato de que, poucos meses após ter aprovado um novo arcabouço fiscal que já era insuficiente para estabilizar a trajetória da dívida, o governo tem emitido vários sinais de baixo comprometimento com as metas.
Embora até o momento a meta de déficit zero em 2024 não tenha sido modificada, a tentativa de limitar o montante de contingenciamento, com base numa interpretação de que a expansão mínima de 0,6% da despesa se sobrepõe ao cumprimento da meta de resultado primário, é incompatível com a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), como mostram Marcos Lisboa e Marcos Mendes em artigo publicado no Brazil Journal esta semana.
Aparentemente, o governo ainda não se deu conta de que a credibilidade da regra fiscal depende da percepção por parte da sociedade de que o Executivo vai se empenhar para cumprir as metas aprovadas pelo Congresso. Neste sentido, as tentativas recentes de contabilidade criativa podem colocar a perder todo o esforço de sinalizar alguma responsabilidade fiscal.
Como mostra a experiência internacional, mesmo em países com grande credibilidade a expansão fiscal da pandemia teve custos expressivos sob a forma de inflação e taxas de juros mais elevadas. No caso do Brasil, o preço a pagar provavelmente será mais alto.
Este artigo foi publicado em 27 de novembro no Blog do IBRE.
*As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional da FGV.
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